quarta-feira, 20 de outubro de 2010

vitrine.

Vi a mãe do seu filho hoje. Ela estava com um vestido igual àquele que você me deu para o Reveillon. Ela passou por mim com o andar displicente de quem não se magoa com olhares de rejeição. O mesmo olhar que eu estampava no rosto quando te vi pela primeira vez. Me chamou a atenção o jeito que ela usa os cabelos amarrados e me lembrei do quanto você gosta dos fios deslizando nas costas nuas. Tentei encontrar nela alguma coisa de você, mas não consegui. Ela me pareceu singela demais para o seu amor avassalador. Para aquela sua intensidade violenta de bem querer. Plácida demais para a sua inconstância. Sutil demais para a sua paixão juvenil. Notei, então, a mão pequenina que ela tateava cuidadosa e, por fim, compreendi porque o vestido parecia melhor nela do que em mim.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

i used to shoot you down.

Perdão. Te invado e te consumo como uma labareda faminta. Sou tua maldição, teu desconforto, o demônio que te queima sem te tocar. Um breve discurso de malícia, um suspiro que corrompe, a saliva que falta ao longo do dia. Sou a beira da calçada, a noite sorrateira que nos conduz. Tua respiração ofegante, teus ombros a se contraírem a cada mísero desvio no silêncio gelado. E sou ainda o reflexo no teu espelho pela manhã, a calda doce no fundo da caneca, a camisa que escolheu vestir. Teu livro favorito, a primeira música do dia. O banho quente na noite de inverno, o sol que fere os olhos em dias luminosos demais e que te fazem ver manchas lilases brilhando lisérgicas ao tentar focar teu caminho novamente. Já fui tua selva, teu canto secreto, a primeira vez que tocaste no mar, Carmen no palco do Municipal. Ainda sou tuas noites em claro, o beijo escondido, teu sonho mais sórdido e tua realização mais efêmera. Sou teu pensamento traidor, a fraqueza no teu encanto, o chicote que te pune, eu sou a tua angústia melancólica. Hoje sou eu e te imploro enfim que me abandones talvez para que não seja eu quem mais te deseja.

sábado, 16 de outubro de 2010

lava que cobre tudo.

Não estava apenas de pé. Estava diante da iara coroada de orquídeas douradas que cantavam em seus cabelos cor de rosa. Ela lamentava palavras de solidão, uma guerra sem algozes, de heróis rústicos e maltrapilhos. As estrelas pingavam no céu, desenhando círculos de luz no espelho d'água. E, de repente, num movimento veloz de seus olhos amarelos, as águas do rio se fizeram imóveis.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

vamos mergulhar do alto onde subimos

Quando finalmente se reencontraram, deram as mãos que geladas se fizeram tão quentes que derreteram se tornando uma só. A noite soprava silenciosa seus sussurros mais secretos. Sem dizerem nenhuma palavra, abriram a porta e correram em direção ao mar para ver as estrelas. Elas não se lembravam de quando havia sido a última vez que não tinham absolutamente nada com que se preocupar. O céu transbordava e despejava sobre elas seu manto negro salpicado de luzes intermitentes que iluminavam seus sorrisos radiantes. Tiraram a roupa e se esqueceram do que ainda tinham que se lembrar, se beijaram sem paixão para suprir a última vontade do corpo, e mergulharam para caçar cavalos marinhos.

para minha Fi.

brinde.

Cheguei. Entrei sem ser notada, como o início de uma noite quente. Se houvesse alguém que pudesse me ver, com certeza não saberia dizer quem sou. Talvez de onde vim ou aonde pretendia chegar, mas jamais seria possível afirmar meu nome. Acredito que, àquela altura, também eu já o havia esquecido. 

Se eu pudesse seria sereia naquele mar de gente, um ídolo a ser aplaudido por um público que assistia despercebido. Nenhuma atenção era devida realmente ao que se passava, mas tão somente a inúteis gestos lânguidos de educação que vez ou outra despontavam aqui ou lá. 

Caberia dizer que as luzes se incumbiam de demonstrar o quanto era importante que todos os rostos fossem vistos, porém jamais notados. Como uma busca por um reconhecimento desordenado e sem virtudes daqueles que se preocupam mais em como devem segurar uma taça de champanhe para parecerem um pouco menos inóspitos ao ambiente. 

E eu, uma cadeira a mais naquele salão invertido, flutuava sem chão buscando a saída mais próxima que pudesse me levar a qualquer lugar onde enfim não houvesse ninguém.

do arpoador.

Quando acordou no dia seguinte, Marina tentava localizar seu próprio corpo. Eram um nó daqueles tão atados que precisou se concentrar para entender como seu braço podia estar encaixado por cima do travesseiro, enrolado nuns panos que depois descobriu ser parte da roupa que vestia quando chegou, embaixo de um pescoço de um conjunto de pouco mais de um metro e noventa de altura. E os dedos, agarrados nos cabelos dele. 

Verão escaldante, os dias amanhecem tão cedo que perdeu a conta do quanto de fato havia dormido. Sabia que se a gata decidisse entrar no quarto, fatalmente iria afastar a cortina e a mais romântica nesga de sol que se apresentasse seria fatal. Por um segundo, pensou em chamá-la para obrigá-lo a abrir os olhos e surpreendê-la ali enamorada, mas lembrou-se de que esquecera o nome do bicho. Era a segunda vez que entrava lá e a única coisa da qual conseguia se recordar era do abajur ao lado da cama que amou e arrependeu-se por perguntar de onde saíra.

Mas dele, lembrou-se para sempre. Em especial, desse dia em que escolheram juntos um dos livros que ele expunha na estante e passaram a tarde deitados quase na mesma posição que acordaram, entre xícaras de café, saliva e cigarros especiais, e se transformaram em personagens fantásticos.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

ante o colapso final a vertigem.

E se eu pudesse te chamar de minha o que seria essa dor? E se eu soubesse como levar essa sina esse tormento de vida que me invade, me condena? Saberia então o dia de amanhã e a vida que deixaria de ser minha, passaria a ser nossa, na contramão do mundo e estaria a mercê das opções que nos proporciona esse microcosmo que inventamos só para nós dois. Ah, como eu seria feliz em viver deitado num divã de veludo a te procurar por todos os cantos da casa com o olhar e te seguir sem me mover um passo porque não é preciso, simplesmente não precisamos mais do que um copo d'água pela metade para inventarmos a nossa realidade conforme o nosso humor. E seria completo em dividir esse desespero que é não me reconhecer e desconhecer o que tenho dentro de mim para sempre sendo isso que chamamos de nós dois e que você teima em chamar de um só. Deixa eu dizer que às vezes eu queria não ser nada, mas tão somente um sopro de brisa fresca para te iluminar o sorriso. Quanto desespero em vão, eu não choro mais. Já não tenho mais espaço para tanta mágoa e cada lágrima que sai traz de volta uma tormenta de dias já idos e vividos e teimados em reviver-se. Tanta coisa que eu já não consigo mais dizer o que é meu e o que inventei. O que eu realmente fiz porque queria e o que gostaria de ter feito para te abrir uma ferida e queimar o pouco que ainda sobrou de inteiro em você. 

vai sem duvidar, mas, se ainda faz sentido, vem.

Demorei tanto tempo para subir a escada que nem me dei conta de quão alto havia chegado.  Subi o primeiro degrau e logo fiquei um pouco preocupada por me parecer um trajeto íngreme demais. E para o segundo e o terceiro levaram tantos dias que pensei em desistir de me aventurar. O que me angustiava mais era o fato de que à medida que eu subia, notava como os degraus se tornavam cada vez mais estreitos, de modo a quase não caberem os dois pés lado a lado. Mas eu fui. Subindo, subindo, subindo. Corria nos mais curtos, para não arriscar ficar muito tempo parada e vacilar as pernas. De vez em quando, me sentia mais segura e dava uma pausa para retomar o fôlego. E quando de vez em nunca eu conseguia parar para pensar no que estava fazendo, notava que já havia ido longe demais para voltar. Como se o chão me parecesse distante e o topo fosse novamente a minha solução. Então, de repente, você apareceu. E achei que tivesse finalmente atingido meu objetivo e a partir de então tudo fosse deixar de parecer tão obscuro. Você estendeu a mão pra mim, eu te alcancei, joguei o corpo para trás e me entreguei. Agora tinha alguém para me segurar se eu tropeçasse, para me orientar se eu me perdesse e para me incentivar se eu pensasse em sentar ali mesmo e desistir. Quando me dei conta, nossas mãos não se tocavam mais, você já parecia um ponto perdido em algum lugar em que nunca cheguei, enquanto eu sentia o vento gelado da queda sem proteção e ansiava por novamente retornar ao ponto de onde nunca deveria ter saído.