domingo, 28 de novembro de 2010

antes de mais nada.

Pedi um conselho ao dia e ele me disse ; por aí, sem medo de errar, sem esperar cair, deixe o chapéu em casa, malandro, e liberte-se da soberania das dúvidas. Vorazes, latejantes e suculentas como uma manga rosa gorda e quente tirada do pé para o café da manhã. O seu cenário não existe. É apenas mais uma farsa da sua vida ordinária. Mudei uns móveis de lugar, abri espaço nas gavetas para guardar seus pensamentos, mas me esqueci de tirar a poeira velha e curtida da mesa de cabeceira. Ficaram as silhuetas do abajur sem lâmpada, do descanso para copos e das minhas lembranças que repousaram ali mais tempo do que deveriam. Fazia tanto que não mexia, que já não sabia outra forma de dispor os objetos, as personagens ilustres que me acompanhavam silenciosas à hora de dormir. Mas escutei o dia que me chamava curioso do lado de fora. Doeu um bocado quando a luz me perfurou a retina. Havia tanto que me desconhecia que foi difícil encarar que aquilo era o meu corpo. Que a ferida deixada pelos raios se alastrava por toda minha extensão e me incendiava. Quando por fim cheguei até a porta, não fui capaz de abri-la por inteiro e me dei conta de que tinha medo. Uma agonia que revirava minhas entranhas e que me impedia de admitir quem eu verdadeiramente sempre quis ser. Criei raízes num casulo de gesso e me escondi até de mim. Talvez porque não pudesse mais me expor aos olhares inquisidores, mas, com certeza, porque não conseguia mais fingir que eles não me doíam.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

aponta pra fé e rema.

Era eu, sentada na margem direita do rio. Sem soluços, sem saudade, só um aperto no peito a pulsar. Um desejo de ser o seu bem querer, a menina dos seus olhos, a vontade simples de chegar sem nunca ter partido. Era eu, te amando loucamente, não porque era você, mas apenas porque desconheço outra forma de amar. Sem pudores, sem segredos, só vertigens e anseios de passar o resto da vida desfrutando do odor da sua voz macia a acariciar cuidadoso a minha nuca. Não porque era você, mas porque a paixão queima em mim, exala e transborda como um mel dourado. Era eu, novamente construindo em mim um castelo de cartas mascaradas, me perfumando calmamente para o momento da queda sublime. Sem ilusões, sem promessas, só a certeza de que tudo uma hora chega ao fim, mesmo aquelas coisas que existiram apenas nas minhas noites em claro e no meu imaginário juvenil. Essas são as coisas de que eu certamente sentirei mais falta, aquelas que vivi profundamente em minha cúpula, pois as inventei, as desfiz, voltei, redefini os planos e compartilhei comigo mesma as dores e os louvores. Aquelas pelas quais definitivamente me apaixonei. Não porque era você, mas tão somente porque são essas que eu vejo do outro lado do rio e dessa vez foi você quem veio me buscar do lado de cá.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

240 horas.

Um beijo. Foi o suficiente para Tiago. Ele, viciado em galanteios baratos ímpares e viralatas, embora amante da cor da boca das mulheres, começou a levar-se a sério. No meio de faíscas de luz que se misturavam com o peso dos meteoritos que lhe empurravam as pálpebras, ele se deparou com uma das bocas mais bonitas que já vira, se não a mais. Logo ali, sob um fio de lua na ladeira cheia. Desde o início, ele sabia que havia se deparado com a pigmentação perfeita e a partir disso conseguia presumir textura e temperatura. Em pouco mais de 30 segundos, percebeu que o lóbulo da orelha também era um barato a se admirar, logo após ouvir distraído É esse lance da poesia mesmo, eu acho.


(@) (F) (&)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

24 horas.

Um dia. Foi o suficiente para Tiago. Ele, viciado na liberdade, amante da vida, não sabia o que fazer com aquela tempestade de faíscas e meteoritos que ela trouxe praquela noite de lua cheia na ladeira. Desde então, passou a ser perseguido por um maldito e incessante cheiro de lírios. No início, eram mais de quatro banhos por dia, ainda tentando se livrar daquele perfume. Demorou um tempo até que sua mãe percebesse e um clarão o iluminasse como um farol: era o cheiro da paixão que ele até então desconhecia.

domingo, 14 de novembro de 2010

35 segundos.

Eu desejo o seu desassossego, bato a cinza n'água e ouço o som da brasa se apagando, fingindo se dissolver, soltando uns pedaços e juntando tudo no fundo para observar o mundo turvo e silencioso, me encanto e sinto o vento que se rebela nas nesgas que as passagens às vezes permitem para que os pensamentos súbitos se embrenhem em locais inóspitos, pois para mim só há uma forma de ver o vento e é daquele jeito que você olha e ameniza as pálpebras e isso significa que você está simplesmente feliz, e esconde uma madeixa atrás das orelhas fingindo que não, mas na verdade isso serve apenas para você tentar fugir do que não se dá para escapar de um segundo para lá ou para tentar se convencer de que desse lado as flores são mais frescas e radiantes. 

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

arrastando o sari.

Dalva nasceu numa quinta-feira de lua cheia de parto normal, o que poucos acreditaram, pois nunca se viu bebê mais robusto na família. O pai faleceu cedo, deixando a mulher e as duas filhas no casarão em Niterói.

Dalva tornou-se Dalvinha, desde sempre uma baixinha nervosa de pestanas longas que tremilicavam sempre que ela se enfezava com alguma coisa. A irmã Elsi, uma sapatão inveterada, fazia broma do jeito sonhador de Dalvinha, mas ela não desistia da idéia de se casar. 

- Não quero qualquer um. Só me caso com um príncipe, mas um príncipe de verdade, um príncipe fidalgo!
Um dia, quando saía da Imprensa, Dalvinha puxou a amiga pelo braço:

- Tem um baile hoje no Consulado, é minha chance de encontrar o meu príncipe.

A amiga não teve outra opção a não ser acompanhar Dalvinha, que, de tão agitada com a possibilidade de finalmente desposar, ensopava as mangas do vestido de suor. A bem da verdade, ela não fazia a mais vaga idéia do que era um Consulado. Só lhe atravessava mesmo o pensamento de encontrar algum homem vindo de um país mirabolante.

E assim foi. Dalvinha com a amiga a tiracolo, logo começou de trelelê com um hindu, diga-se de passagem, bem mais moço do que ela, pele de um marrom seco, roupas e turbante coloridos e a barba arrastando no peito.

- Veja só, isso sim é um príncipe fidalgo!
A amiga nem se atrevia a opinar. O homem pouco entendia o que ela dizia, mas o suficiente para aceitar o convite para a última sessão exibida no Odeon. E foram. Dalvinha, o hindu e a amiga, que se perguntava a todo minuto onde havia amarrado seu burro.

Chegaram esbaforidos, quase atrasados e só tiveram mesmo tempo para se sentarem, quando as luzes logo se apagaram. Assim que o telão se iluminou, teve início uma chuva de vaias e reclamações, e Dalvinha, roxa de vergonha, só pensava:

- Bando de sem educação. O que o príncipe vai pensar?

De repente, foi possível distinguir entre os "uuuuus" ininterruptos um sonoro:

- Tira o chapéu!!!

Dalvinha, mais roxa do que antes, não sabia onde enfiava a cara, muito menos como ia falar para o príncipe que seu turbante era o motivo de tamanha insatisfação. A amiga, coitada, só tentava se lembrar de porque tinha afinal caído naquela cilada.

É evidente que o episódio não teve futuro e Dalvinha ficou traumatizada a ponto de nunca mais pisar na sala de exibição, mas não o suficiente para desistir de se tornar a mulher de um fidalgo.

Muitos anos depois, a amiga cruzou com Elsi durante as compras de Natal. Sobre Dalvinha, a única notícia esperada para uma solteirona imaculada:

- Morreu do coração a pobre.