quarta-feira, 31 de agosto de 2011

nessa luz tão clichê eu te encontro perdida e quero fugir com você.

Manoel não dormiu. Se pensasse bem, era o que já queria desde o início. Ele não sabia ao certo o que lhe dizia para continuar. Ele não sabia nada. Enquanto ela dormia, pensava se Marina já estava de pé. Linda, Marina. Linda de doer. Linda de viver. Linda de sorrir e fazer sorrir. Linda, deveria se chamar Marina, para Manoel. E, linda, era como Manoel se lembrava de Marina. Não linda exatamente como vêem os fúteis. Linda como ela deveria ser e havia se esquecido. Ou como ainda não havia descoberto. É linda, ele pensava, e se entorpecia na luz do dia que começava estranho, sem terminar, mas já findo em si. Não é possível que eu não tenha reparado, ele pensava e ouvia o sol crepitar lá fora.

Se Marina soubesse o quanto se ama lá fora, teria saído da cama antes. Com certeza, ela não lembrava mais de como era a vida sem. Marina não sabia mais o quanto a fazia feliz, vivia da inútil presença da lembrança que a assolava sem perdão, uma saudade viva na carne, na vida que se incomodava em viver. Marina, a menina de olhos misturados em prece, a um deus recém descoberto que ainda não lhe havia ensinado como extirpar a dor preciosa que carregava no peito para não se esquecer do que era enfim morrer. E renascer.

Manoel pensava impune em como faria. Um sermão na montanha não lhe seria suficiente. Não para ele; para Marina, talvez. Para uma serenata não seria capaz de escolher as musicas certas, talvez sua voz o calasse em dúvidas de prosseguir. Quem sabe um dia Marina escolherá as musicas que quer me ouvir, quem sabe ela seja um dia a querida de meus afagos, quem sabe o mundo não será tão injusto e me trará a paz novamente, ele cogitava, ciente de que se tratava de uma batalha perdida. Uma batalha, que hoje me traz à porta o fracasso, em batidas firmes e compassadas, mas o que não dá certo hoje poderá ser o oxigênio de amanhã. Mas se amanhã já é hoje, como farei?

Quando Marina pensou no que queria dizer, o que a invadiu primeiro foi o que não sabia explicar, como faz tempo não acredita em si mesma, o que há tanto a impede de trazer para dentro o que lhe mostram em verdades voláteis. Não sabia mais definir se era bom ou ruim ser invadida de tanto azul, mas preferiu pensar que era bom. Afinal, ruim, há muito já era. Ser bom para ela não significava exatamente ser ruim para outros, mas naquele momento, pensou novamente, e preferiu decidir assim. Não sabia se isso a aproximava ou não do que toda a gente fazia questão de fazê-la acreditar, porque definitivamente, aproximar faria cair por terra tudo o que se impôs para ser capaz de seguir.

Manoel ainda não havia se decidido se preferia ver de longe ou se preferia se livrar dessa sensação confusa, o que também o afastaria de tudo que havia decidido para si. Ele não ainda havia definido por onde ia seguir, mas desde o início de tudo ele sabia onde tudo iria chegar. E sofrendo, então, seguiu tentando romper os duros obstáculos. Como Marina. Manoel, insatisfeito com tudo o que já havia esquecido, resolveu se lembrar de como ela repetia displicente as palavras dele, talvez num ritmo diferente, numa cadência não pensada antes, que talvez ele tivesse querido pensar. Mas Marina, maldita, Marina foi capaz. E tirou todo o respaldo, a segurança do piso e Manoel pensou, estou caindo.

Marina e seu amor antigo, guardado de pó e mágoas, precisava se apaixonar novamente. Mas não sabia como. Não sabia como curar as feridas que alimentava para trazer algum tipo de motivação para o corpo inerte. Era um dia, uma noite, luzes sem cessar, uma cura, cadê? Marina queria dizer que adorava ela. E Manoel adorava que ela adorasse qualquer coisa, só pelo simples fato de que ela sorria quando saía sem se importar com o às vezes incomum silêncio entre eles. Marina queria poder esquecer todos os castelos que construíra para se esconder nos últimos dias. Meses de trabalho em vão, ela se despedia das tentativas de se maltratar pelas noites inundadas em pranto, de rosto iluminado de cansaço e dor.

E Manoel, num misto de riso e dor, não a mesma dor de Marina, mas uma dor de vazio desconhecido, tinha a certeza de que aquela felicidade era uma coisa mais do que antes experimentada pelo simples fato de nunca ter se pensado de pé tão cedo, ainda com um mesmo pensamento a lhe ocorrer. Não era uma bobagem de vidas deixadas para trás, em ruas que nunca percorreu, mas daquelas que sabia que não precisaria apontar os postes de luz mais bonitos, a luz que ele tinha para enxergar adiante estava ao lado. Uma vez, então, em sua vida feliz, ele viu que feliz estava aqui, sem saber por onde começar a se desfazer do que já tinha como seu eu.

Marina não sabe como começar. Não fazia mais sentido não dizer. E algumas coisas que vê e sente e vive, ela no seu viver contido de menina, não quer se calar. E grita, grita a plenos pulmões e chora e ri, não como Manoel, deitado no sofá da sala já embriagada de raios de sol, ela ri de uma felicidade já vivida, que não volta mais, da singela lembrança que preferiu guardar, dos nomes que guardou e das manhãs de chuva, diferentes dessa que começa. Parece lindo o cenário, parece tinta a óleo, parece a paisagem dos sonhos. E suas lágrimas, cansadas de serem convidadas a participar de seu desespero, mostraram que o quadro que carregava nas costas, tentando decorar os dias de hoje com o que havia ficado no passado, é feito de aquarela e se esvai.

Manoel abraça Marina, ele crê. Ela não sabe de onde vem o calor que a conforta, mas decide que não precisa mais correr. Ele adormece enfim, invadido pelas cores que ela chora. Ela sofre, mas simplesmente ri. E quer conversar com ele até amanhã de manhã, sem saber de quem é a mão que a afaga, nem que o dia para ele simplesmente acabou de apagar, pois todo o resto basta.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

você só me fez mudar, mas depois mudou de mim.

Hoje Clarice morreu. Morreu de morte matada, morte sofrida, morte abandonada. Foi a morte do amor de nunca vida, a morte do sereno escutar da palavra ávida de sentido. Clarice morreu, Alice não se culpa mais. 

Hoje foi o dia em que Alice, matou Clarice. Puxou seu pé por baixo da mesa e derrubou-a de cabeça no chão. Ela estava desacordada e não entendeu quando Alice bateu a porta atrás de si e ateou fogo na casa. Clarice sufocou com a fumaça e não conseguiu pedir socorro, rastejou por algum tempo, entre fragmentos de desdém espalhados pelo chão e por fim achou a porta, aquela que Alice fechou. 

Mas a chave Alice carregou consigo. E Clarice, sem entender o porquê, entendeu simplesmente que não seria capaz de sair. Era o fim. 

Adeus, vida, adeus. Adeus, bom dia, adeus. Adeus, promessas, palavras, perdão, palavras, pedidos, palavras, perdidas palavras. Adeus, dias, noites, dias-noites. Adeus, tempo, adeus. Adeus, boa noite, eu me despeço de todos daqui.

Adeus, mentira, adeus. Adeus, sufoco, vergonha, medo, ameaça. Adeus. Adeus. Adeus.

Meu coração bate vazio. Seu grito oco no meu peito espalha a dor que lateja o mar de veias que me irriga de falta. Estou sozinha, seu bem querer não me rege mais e, por isso, não me reconheço. 

Ontem ouvi meu nome na TV e fingi que era você a me chamar. Não era o meu nome exatamente, mas o nome diferente que escolhemos para nos chamarmos e que em qualquer contexto me lembrará você. 

Eu sinto tanto pelos dias que desperdicei acreditando que você estaria comigo para sempre. Sinto pelas noites em que senti calor e não dormi abraçada com você o tempo todo. Eu sinto tanto, meu amor. Eu sinto tudo o que eu sentia e mais o espinho frio que me atravessa quando seu sorriso me vem em áudio e cor. E enquanto você sorri eu ouço um eu te amo redondo de luar, não o seu adeus silencioso de dor. 

E de cólera não se cria adeus, se compila motivos para não enxergar o que meu mundo, você, meu vulcão, despeja cego. Eu não sabia que seus pés pesavam tanto. Eu não sabia que seu coração batia tão devagar. Eu confundi o meu mundo com o nosso, eu fiz dele um céu limpo de rajadas de vento. Eu quis um querubim para me contar a história do dia igual a esse, no caminho igual a esse, mas que hoje me leva para muito longe daquele que eu pensei fosse ser o último gosto que eu iria conhecer. 

A lua me olha queimar aqui, a maldita. E eu não sinto mais o calor me arder.