quinta-feira, 22 de maio de 2008

então

E quando acordou de manhã já não sentia mais a raiva do dia anterior. Na verdade, o que latejava era uma vergonha absurda de tudo o que tinha dito. Da situação que criou para si mesma, que sabia que poderia acontecer, mas que por vã inocência ainda cria na possibilidade de mudar. Porque no fundo sempre soube que ninguém muda ninguém e, no entanto, insistiu em tentar, fingindo que não se incomodava, não se importava, que era superior àquilo, que tinha aprendido a lidar com tudo.

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E quando o cachorro latiu lá fora, já sabia o que lhe esperava. Um pedido de desculpas gordo de tanto pesar, mas que já não surtiria mais efeito algum. Porque depois de tantas vezes ralar o mesmo joelho, abrindo a ferida sem mesmo curá-la, não haveria mais remédio que pudesse fechar a carne viva sangrando.

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E quando sentiu o cheiro de café, levantou correndo da cama. Ao entrar na cozinha, a viu. Os cabelos molhados ainda pingavam na camisa que roubara caída no chão do quarto e que a engolia fazendo quase um vestido. E não esperava nada mais a não ser que ela pulasse em seu pescoço, cruzando as pernas ao redor de sua cintura, com o gosto do café melado e da manteiga que escorria do pão.

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E quando chegou em casa quase não pôde acreditar. Os armários vazios não deixavam dúvidas de que realmente havia partido. Sem volta. Sem retorno. Sem adeus. Sem olhar de despedida. Sem gritos. Sem ofensas. Sem última transa. Sem levar os vícios, as viagens, os sorrisos e o par de chinelos verdes de que tanto gostava.

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E quando o ano virou as lágrimas escorreram sem entender o porquê. Olhou para os lados, viu todos e não reconheceu ninguém. Talvez porque os olhos estavam turvos. Mas muito mais provavelmente porque sabia que faltava alguém que ainda iria conhecer.



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