segunda-feira, 22 de junho de 2009

o (meu) relógio da (sua) cozinha

Fernanda e Flavia já se conheciam. Uma inacessível. A outra inatingível.

Mas teve um dia em que Fernanda se entregou, perdeu o juízo, sem motivo aparente ou sem precedentes, descobriu que amava Flavia. Não era só uma curtição de bebedeira, ou uma sensação diferente. Ela queria ficar junto, andar de mãos dadas na rua, dar beijo na praça e tomar uma média na padaria. Ela queria dormir grudado, acordar embaixo da coberta, dividir os pijamas e fazer picnic.


A Fernanda não escolheu o melhor jeito de contar isso pra ela, mas, no final, de certa forma, até que funcionou. A Flavia foi pra parede, com as mãos da Fernanda grudadas entre ela. Não sabia se tentava prender a outra ou se se segurava pra não cair. E tudo veio como uma avalanche e elas lá no topo de mãos dadas, só olhando.

E dias depois, a Fernanda recuou e a Flavia cedeu, se esqueceu de todo o resto, e só se ouviam os corações descompassados que quase estouravam e afogavam as duas de dentro para fora.

Então, um dia, a Flavia decidiu que não ia se decidir e resolveu que não ia continuar. Ela preferiu enganar todo mundo, ela e a Fernanda, e tomou sua decisão. E Fernanda não entendeu, não aceitou, chorou e não dormiu por dias seguidos. E a Flavia plácida e impávida, não mexia um músculo do rosto.

A Flavia voltou pra realidade dela e a Fernanda mudou de realidade.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

afraid of making a mistake




no mistakes in the Tango.

not like life. simple.

why don't you try?



quarta-feira, 17 de junho de 2009

itália (fim)

Preferiu uma barra de chocolate com avelãs, mais confortante pro início de noite fria.

Chegou. Jogou o casaco no encosto da cadeira e tirou os tênis usando os próprios pés. Pegou um copo d'água gelada e virou quase num gole só.

Quando finalmente se jogou no sofá, apoiou os pés numa almofada e notou que uma das meias tinha uma mancha escura.

Preciso parar um pouco. Talvez de querer ser todos e não ser nenhum. De parar pra pensar em tudo e tentar achar motivos para não pensar em nada. Parar de me preocupar com o que já passou e dar valor ao que vivi. E não foi pouco. Mas quando tento me lembrar, acho tudo tão distante, que quase não vejo sentido para a maioria das coisas.

Como é chato lembrar só dos primeiros. Primeiro dia na escola, primeiro beijo, primeira transa, primeiro porre, primeiro fora, primeiro salário, primeiro amor.

Aí chega uma hora, que a gente já fez tanta coisa, que começa a repetir. Primeiro dia na escola nova, primeiro beijo ralado, primeira transa com mulher, primeiro porre com amnésia, primeiro fora-fossa, primeiro salário de férias.

Pois é. O amor continua sempre sendo o primeiro, toda vez que a gente esbarra com ele.

terça-feira, 16 de junho de 2009

dança da solidão

E, então, Tereza descobriu quem é o motivo dos carinhos do Beto.

Ficou louca, socou as paredes, virou noites em lugares que nem lembra, tentando fugir da realidade que a engolia. Ela se meteu em todas as roubadas, em milhares de furadas, fingiu pros outros e pra si mesma. Muitas vezes quase acreditou.

No entanto, só ela sabe o esforço que fazia para se sentir acolhida ao lado de tantos outros caras.

Ela fazia isso pra se convencer de que alguém também lhe dava carinho. Ela fez isso diversas vezes e só ela sabe o que era chegar em casa, depois de uma noite de trepada, e chorar baixinho, fingindo não se importar com o Beto na cama com a outra e uma garrafa de vinho vazia jogada no chão.

Ela sofria porque sabia que nada que fizesse mudaria o fato de que ela não era amada por mais ninguém.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

gabriel

Clarice chegou com o raio de sol e com uma garoa fina que a acompanhou em todo o caminho para casa. Subiu os degraus da entrada com cuidado e abriu a porta com as chaves que levava agarrada nas mãos. A escada nunca lhe pareceu mais longa, nunca deu tempo de pensar em tantas coisas num trajeto sempre tão mecânico.

Secou os pés no capacho que lhe dava as boas-vindas, enterrou os anéis de cabelos atrás das orelhas, reparou que estava sem um dos brincos, secou o rosto e ainda hesitou por alguns segundos em enfiar a chave na porta. Girou com cuidado a fechadura enferrujada e empurrou a porta sem pressa. Conseguiu não fazer barulho até tropeçar na ponta do tapete enrolada perto do sofá.

Passou pelo corredor, as pontas dos pés flutuando rangendo os tacos. Entrou no quarto, jogou os sapatos embaixo da cama, deslizou por baixo dos lencóis gelados e deitou-se de costas para Gabriel. O frio de seu corpo fez com que ele se mexesse um pouco, mas não o despertou; foi o suficiente para ele saber que ela estava ali.

Clarice não conseguia pregar os olhos. Tentava esconder as mãos ainda úmidas da garoa embaixo do travesseiro ou entre as pernas.

Pensou no homem de calças compridas abrindo a padaria, no gari tentando descolar o cartaz do poste de luz, na senhora encolhida passeando um cão com roupa e sapatos agarrada a um cigarro amassado de filtro amarelo e nas mãos pequenas e brancas de Luiza passeando no braço do sofá vermelho até encostarem nas suas.