domingo, 10 de abril de 2011

a cabra. {o surto}

Pensar em você tão próximo e tão distante sem encontrar solução para esse desespero e para a solidão... Mas não é só me sentir sozinho, é sentir sua ausência nas hipóteses que simulo ciente da sua cumplicidade. Muitas vezes me assusto só de sonhar e, sobretudo, me distraio se me percebo sob as sombras da possibilidade de desconhecer o que o acaso separou para os nossos dias seguintes. Sei que dificilmente seria capaz de supor o sucesso sem considerar os destroços.  Mas assim, nada sóbrio de desejo, gozo com seu balanço e ascendo. Sinto saudades dos seus seios que se pronunciam em sensualidade insensata como pouso para meu sexo. Em uso da minha face cética busco fazer cessar a certeza da intensidade, sintoma de um misto de sofreguidão e mistério sacro, e, cínico, visto meu semblante de superioridade. E na imensidão do deserto da minha essência, me vejo manso e solícito, e não me canso, mas apenas resisto e insisto, pois sei que o resultado será um samba sensacional, em compasso com os sinos da missa de casamento. Um sacrifício para a minha versão antes vazia, uma cena dissonante à minha inconstância selvagem, mas que desde hoje será somente festa. Por mais que te pareça satisfação mesquinha posta em questão pela minha destreza indescente e, diga-se de passagem, usual, desça de seu pedestal e faça cessar minha histeria, mesmo que em resposta tácita. É o ápice Suzana.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

a cabra.

Ele se incomodava com a masculinidade dela. Com essa facilidade com que lidava com as relações, principalmente as que estavam muito além do amor rígido e simétrico em que 1 e 1 são apenas e infelizes 2. Não, ela se movia pelo agora, o instante inequívoco e irrevogável que a maioria prefere rejeitar. Ela é o hoje, o 1, o 2, o 3, até o 60, e, retornando ao primeiro segundo, já era outra pronta para se renovar de outros em busca de si. E, renovada, era capaz de ser mais do que ele jamais poderia suspeitar ou compreender: ele, atado de costas para a luz, não era capaz de ser, mas, tão somente, de se alimentar dos restos que podia alcançar.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

a barca. {a cena}

Sentia falta daquele cheiro de flor de laranjeira. Ele saía do banho e não se enxugava por completo, tinha a mania de sair pela casa com o corpo ainda úmido, de cuecas e um cigarro em punho. E passava de um lado para outro como se procurasse algo que ainda desconhecia. E de repente sentava a seus pés aninhando a cabeça entre seus joelhos a ronronar, enfiando o nariz em suas coxas, suplicando em silêncio que lhe coroasse de afagos. Era ríspida e se fingia indolente, negando-lhe de início as carícias, até que por fim ele se expusesse e com palavras ainda que resguardadas por duplos sentidos mostrasse sua demanda obscena pelos dedos dela em seu couro cabeludo.

Deitada no sofá ela se fingia distraída com qualquer coisa na televisão, mas o havia acompanhado desde que saíra do banheiro com a toalha pendurada no ombro direito tirando o excesso de água dos cabelos com a palma da mão, e o perfume invadira imune em aquiescência todas as células de seu corpo, para nunca mais deixá-las. E era luminosa aquela flor de laranjeira, que se transformava em minúsculas partículas estelares que cintilavam ao seu redor. Ela acompanhou-o em seu gingado pseudo absorto, passando em sua frente uma, duas, três vezes, esperando o instante em que ele (tão fingidamente quanto ela) a notaria.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

a barca. {a dança}

Já passava das 2h da manhã, quando se falaram pela primeira vez. Ela disse que tinha vontade de café e ele pediu que em troca lesse para ele. Levantou-se com as pernas moles do prazer recente, as longas pernas que ela tanto admirava. Ela permaneceu imóvel, quase intacta no chão da sala e acompanhou se corpo esguio se dirigir curvado até a porta da cozinha. Ele sentiu o calor do seu olhar percorrer-lhe a nuca, virou por um segundo e sorriu para ela. Nu e indefeso, ele não tinha mais medo.

Escolheu as canecas, encheu a chaleira e pôs a água para ferver. Acendeu um cigarro, provavelmente a única coisa que não lhes faltaria nos próximos dias.

Ela se pôs de pé, as pernas rijas do prazer recente, e finalmente percorreu os móveis e paredes daquela que seria a sua morada nos próximos dias. Em frente à estante, acariciou serena as lombadas dos livros e escolheu seu discurso.

Por ti junto aos jardins recém-enflorados me doem os perfumes de primavera.
Esqueci teu rosto, não recordo de tuas mãos, de como beijavam teus lábios?

A casa era invadida pelo cheiro selvagem do café. Descia as escadas, vazava pelas janelas, inundando toda a vizinhança de virilidade e de luz da manhã, ainda que o céu continuasse a ser um manto negro. Entregou-lhe a caneca vermelha, ficou com a outra sem desenhos especiais e ela se pôs de pé no sofá e prosseguiu.

Por ti amo as brancas estátuas adormecidas nos parques, as brancas estátuas que não têm voz nem olhar.
Esqueci tua voz, tua voz alegre, esqueci de teus olhos.
Como uma flor a seu perfume, estou atado à tua lembrança imprecisa. Estou perto da dor como uma ferida, se me tocas me maltratarás irremediavelmente. 

Ele olhava para ela, a flor que dançava  suavemente no ritmo da brisa da madrugada que se estendia e dava início aos dias que não eram dias, mas um único tempo que se desdobraria em mil momentos irreconhecíveis a olho nu.

Tuas carícias me envolvem como as trepadeiras aos muros sombrios.

E nesse trecho já estava sentada no colo dele, umbigos colados, as pernas em tesoura, e afastava o cabelo para que ele pudesse beijar atrás de suas orelhas.

Esqueci teu amor e não obstante te adivinho atrás de todas as janelas.

Puxou os cabelos dela a fim de que pudesse mirar nos olhos e por fim ele disse de cor

Por ti me doem os pesados perfumes do estio: por ti volto a espreitar os signos que precipitam os desejos, as estrelas em fuga, os objetos que caem.


Suzana lê "Um amor", de Pablo Neruda

sexta-feira, 1 de abril de 2011

a barca. {a glória}

Chovia, meu deus, como chovia. Caminhava decidida, semiprotegida por um guarda chuva imenso, do qual, por 3 ou 4 vezes, pensou em se livrar, os pés inevitavelmente mergulhados nas poças, encharcada até os joelhos. Não ansiava pela chegada, mas pelo encontro em si. Não era capaz de decidir o que era dor de outras feridas e o que de fato temia sobre ele. Nada além de ser ela mesma, ou sobre ter que fingir um outro sorriso para ser acolhida perpetuamente. E chovia.

Já havia ensaiado o desejo de encontrá-la. Como se pudesse prever o que aconteceria, planejou solitário o instante em que ela apareceria do outro lado da rua. Tinha medo de sua confiança, mas estava certo de que nada poderia evitar que se entregasse. Não pensava em derrota, mas no sucesso inevitável de quando se deseja sem interferência da razão. Esperava que ela nada dissesse, que compartilhasse delitos de paixão irresignada e no fundo tinha medo do que seria dito, pois definitivamente não sabia mais como se defender do que ela lhe havia despertado com suas promessas prematuras. E chovia, meu deus, como chovia. Imóvel na esquina, preferia aguardar sob a cortina d'água a abrir o guarda chuva minúsculo que trouxera para lhe oferecer.

E aproximando-se do inevitável, ela hesitou por alguns segundos. Mudou a expressão, certamente para evitar que ele percebesse a inquietude em seu olhar, o que era muito mais importante do que acertar os cabelos ou secar o rosto úmido de suor e gotas de chuva. 

E aproximando-se do evitável, ele, ainda que desamparado, firmou a postura, acendeu um cigarro e desviou os olhos da esquina por onde ela chegaria, tentando controlar o tremor das mãos e os saltos que lhe davam o peito.

Chovia. Chegou. Unidas as mãos geladas, foi derretida a segurança preordenada. Sem palavras, nem convites disfarçados pela timidez, subiram a ladeira em silêncio, com a certeza de que nada mais faria diferença, além da chuva que serviria de motivo para que ela não se fosse ainda naquela noite.

Ela jogou fora o guarda chuva imenso e decidiu aceitar o dele.