quarta-feira, 6 de abril de 2011

a barca. {a dança}

Já passava das 2h da manhã, quando se falaram pela primeira vez. Ela disse que tinha vontade de café e ele pediu que em troca lesse para ele. Levantou-se com as pernas moles do prazer recente, as longas pernas que ela tanto admirava. Ela permaneceu imóvel, quase intacta no chão da sala e acompanhou se corpo esguio se dirigir curvado até a porta da cozinha. Ele sentiu o calor do seu olhar percorrer-lhe a nuca, virou por um segundo e sorriu para ela. Nu e indefeso, ele não tinha mais medo.

Escolheu as canecas, encheu a chaleira e pôs a água para ferver. Acendeu um cigarro, provavelmente a única coisa que não lhes faltaria nos próximos dias.

Ela se pôs de pé, as pernas rijas do prazer recente, e finalmente percorreu os móveis e paredes daquela que seria a sua morada nos próximos dias. Em frente à estante, acariciou serena as lombadas dos livros e escolheu seu discurso.

Por ti junto aos jardins recém-enflorados me doem os perfumes de primavera.
Esqueci teu rosto, não recordo de tuas mãos, de como beijavam teus lábios?

A casa era invadida pelo cheiro selvagem do café. Descia as escadas, vazava pelas janelas, inundando toda a vizinhança de virilidade e de luz da manhã, ainda que o céu continuasse a ser um manto negro. Entregou-lhe a caneca vermelha, ficou com a outra sem desenhos especiais e ela se pôs de pé no sofá e prosseguiu.

Por ti amo as brancas estátuas adormecidas nos parques, as brancas estátuas que não têm voz nem olhar.
Esqueci tua voz, tua voz alegre, esqueci de teus olhos.
Como uma flor a seu perfume, estou atado à tua lembrança imprecisa. Estou perto da dor como uma ferida, se me tocas me maltratarás irremediavelmente. 

Ele olhava para ela, a flor que dançava  suavemente no ritmo da brisa da madrugada que se estendia e dava início aos dias que não eram dias, mas um único tempo que se desdobraria em mil momentos irreconhecíveis a olho nu.

Tuas carícias me envolvem como as trepadeiras aos muros sombrios.

E nesse trecho já estava sentada no colo dele, umbigos colados, as pernas em tesoura, e afastava o cabelo para que ele pudesse beijar atrás de suas orelhas.

Esqueci teu amor e não obstante te adivinho atrás de todas as janelas.

Puxou os cabelos dela a fim de que pudesse mirar nos olhos e por fim ele disse de cor

Por ti me doem os pesados perfumes do estio: por ti volto a espreitar os signos que precipitam os desejos, as estrelas em fuga, os objetos que caem.


Suzana lê "Um amor", de Pablo Neruda

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