domingo, 27 de novembro de 2011

sábado, 26 de novembro de 2011

metade da terceira conversa.

- Jesus Cristo. - Ela passa a marcha com uma violência impressionante e fica sem falar comigo durante um tempo. Sei que quase chegamos a algum lugar; sei que se tivesse coragem eu diria a ela que ela estava certa, que ela sempre tinha razão e que eu precisava dela e a amava, e teria pedido que ela se casasse comigo ou algo assim. Só que, sabe como é, quero manter minhas opções em aberto, e de qualquer forma não há tempo, porque ela ainda não terminou comigo.

- Sabe o que realmente me incomoda?

- Sei. Todos esses troços que você acabou de me contar. A respeito de como eu mantenho minhas opiniões em aberto e tudo o mais. 

- Fora isso.

- Puta que pariu. 

- Eu consigo lhe dizer exatamente - exatamente - o que está errado com você e o que você deveria estar fazendo a respeito, e você não conseguiria nem chegar perto de fazer o mesmo por mim. Conseguiria?

- Sim.

- Comece, então.

- Você está farta do seu emprego.

- E isso é o que está errado comigo, não é?

- Mais ou menos.

- Está vendo? Você não tem a menor idéia. 

- Dê-me uma chance. Acabamos de voltar a morar juntos. Provavelmente descobrirei alguma outra coisa nas próximas duas semanas. 

- Mas nem mesmo farta do meu emprego eu estou. Gosto bastante dele, na verdade.

- Você só está me dizendo isso pra me fazer parecer idiota. 

- Não, não estou. Gosto do meu trabalho. É estimulante, eu gosto das pessoas com quem trabalho, já me acostumei ao dinheiro... mas não gosto de gostar disso. Fico confusa. Eu não sou quem eu queria ser quando cresci.

- Quem é que você queria ser?

- Não uma mulher de blazer, com uma secretária e de olho numa sociedade na firma. Eu queria ser defensora pública com um namorado DJ, e está tudo dando errado.

- Então vá arranjar um DJ pra você. O que é que você quer que eu faça?

- Não quero que você faça nada. Só quero que você entenda que eu não me defino inteiramente pela minha relação com você. Quero que você entenda que só porque estamos esclarecendo as coisas entre nós, não quer que eu esteja ficando esclarecida. Tenho outras dúvidas e preocupações e ambições. Não sei que tipo de vida eu quero e não sei em que tipo de casa eu quero morar e a quantidade de dinheiro que estarei ganhando daqui a dois ou três anos me assusta e...

- Você não podia ter desembuchado isso logo de cara? Como é que eu ia adivinhar? Qual o grande segredo?

- Não há grande segredo. Estou simplesmente salientando que o que acontece conosco não constitui a história toda. Que eu continuo a existir mesmo quando não estamos juntos.

Eu teria descoberto isso sozinho, no final. Teria visto que só porque eu fico um pouco fora de foco quando estou sem parceira, não significa que isso aconteça com todo mundo. 

Alta fidelidade, Nick Hornby.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

viver é super difícil o mais fundo está sempre na superfície,

Eu não seria nada se não fosse a minha vida de deixar viver. Eu não seria mais nada além, se não houvesse dito e revisto os passos que dei, as manias que perdi e as palavras que deixei no ar. Sem você eu achei que não viveria, mas descobri que o seu silêncio me foi mais digno que o seu perdão. Eu lhe falei que o meu hoje era um vazio pleno de desconfianças e desprezo, que eu não podia mais sentir nada que não fosse o que outro dia eu refiz meu, mas eu preferi desdizer o meu ontem a rever o amanhã. Eu soube desde sempre que isso não daria certo. E não deu. Não porque o meu começo não tenha sido em desconforto, mas tanto mais porque o dia certo de existir sempre foi o que por mim se deu a controlar. Eu não tive controle de tudo, eu não aprendo que não é possível ter controle de tudo e que é exatamente aí que tudo se encaixa. Eu não sou nada além de uma mentira que se detém em erros para justificar meus impulsos e minhas totais verdades. Eu não tive medo de entrar no palco sem tirar o chapéu, não foi isso exatamente que me feriu. Foi o seu não em forma de sim para depois, que me tirou as rédeas que eu gosto de ter em mãos. Foi o meu desespero em forma de preocupação que me tornou esse desterro, esse impacto sem provas, essa dor em desatino que me corrói. Eu fui corrompido por mim e, disso, ninguém me avisou. Se eu não pudesse mais saber o quanto seria fácil ter uma união em relento, uma falsa noção de prazer, eu teria sido menos prudente. Teria me deleitado em redenção, em nostalgia, me permitindo viver com você o que eu vivi em outros braços, e estaria por fim, revivendo. Essa liberdade que inspiro é muito menos que o pânico de não ser desejado, uma lenta e suave ilusão de que o mundo conspira para que o meu sétimo dia seja tudo menos descanso. Eu seria mais se não me sentisse tão pouco amado, e tudo o que preciso hoje é de alguém que me enxergue, o que absolutamente se distancia de apenas me ver, porque é isso que me faz caminhar adiante. Você não é nada, só alguém com quem dialogo para não me sentir tão só, que criei dentro de mim como o perfeito interlocutor em meus dias infinitos, meus profundos vazios. Eu também não sou ninguém e sem demora me apresento para dizer que sou infeliz como você, que não sei o meu lugar num mundo tão imenso e que não sei por onde começar a procurar. Muito prazer. 

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

nessa luz tão clichê eu te encontro perdida e quero fugir com você.

Manoel não dormiu. Se pensasse bem, era o que já queria desde o início. Ele não sabia ao certo o que lhe dizia para continuar. Ele não sabia nada. Enquanto ela dormia, pensava se Marina já estava de pé. Linda, Marina. Linda de doer. Linda de viver. Linda de sorrir e fazer sorrir. Linda, deveria se chamar Marina, para Manoel. E, linda, era como Manoel se lembrava de Marina. Não linda exatamente como vêem os fúteis. Linda como ela deveria ser e havia se esquecido. Ou como ainda não havia descoberto. É linda, ele pensava, e se entorpecia na luz do dia que começava estranho, sem terminar, mas já findo em si. Não é possível que eu não tenha reparado, ele pensava e ouvia o sol crepitar lá fora.

Se Marina soubesse o quanto se ama lá fora, teria saído da cama antes. Com certeza, ela não lembrava mais de como era a vida sem. Marina não sabia mais o quanto a fazia feliz, vivia da inútil presença da lembrança que a assolava sem perdão, uma saudade viva na carne, na vida que se incomodava em viver. Marina, a menina de olhos misturados em prece, a um deus recém descoberto que ainda não lhe havia ensinado como extirpar a dor preciosa que carregava no peito para não se esquecer do que era enfim morrer. E renascer.

Manoel pensava impune em como faria. Um sermão na montanha não lhe seria suficiente. Não para ele; para Marina, talvez. Para uma serenata não seria capaz de escolher as musicas certas, talvez sua voz o calasse em dúvidas de prosseguir. Quem sabe um dia Marina escolherá as musicas que quer me ouvir, quem sabe ela seja um dia a querida de meus afagos, quem sabe o mundo não será tão injusto e me trará a paz novamente, ele cogitava, ciente de que se tratava de uma batalha perdida. Uma batalha, que hoje me traz à porta o fracasso, em batidas firmes e compassadas, mas o que não dá certo hoje poderá ser o oxigênio de amanhã. Mas se amanhã já é hoje, como farei?

Quando Marina pensou no que queria dizer, o que a invadiu primeiro foi o que não sabia explicar, como faz tempo não acredita em si mesma, o que há tanto a impede de trazer para dentro o que lhe mostram em verdades voláteis. Não sabia mais definir se era bom ou ruim ser invadida de tanto azul, mas preferiu pensar que era bom. Afinal, ruim, há muito já era. Ser bom para ela não significava exatamente ser ruim para outros, mas naquele momento, pensou novamente, e preferiu decidir assim. Não sabia se isso a aproximava ou não do que toda a gente fazia questão de fazê-la acreditar, porque definitivamente, aproximar faria cair por terra tudo o que se impôs para ser capaz de seguir.

Manoel ainda não havia se decidido se preferia ver de longe ou se preferia se livrar dessa sensação confusa, o que também o afastaria de tudo que havia decidido para si. Ele não ainda havia definido por onde ia seguir, mas desde o início de tudo ele sabia onde tudo iria chegar. E sofrendo, então, seguiu tentando romper os duros obstáculos. Como Marina. Manoel, insatisfeito com tudo o que já havia esquecido, resolveu se lembrar de como ela repetia displicente as palavras dele, talvez num ritmo diferente, numa cadência não pensada antes, que talvez ele tivesse querido pensar. Mas Marina, maldita, Marina foi capaz. E tirou todo o respaldo, a segurança do piso e Manoel pensou, estou caindo.

Marina e seu amor antigo, guardado de pó e mágoas, precisava se apaixonar novamente. Mas não sabia como. Não sabia como curar as feridas que alimentava para trazer algum tipo de motivação para o corpo inerte. Era um dia, uma noite, luzes sem cessar, uma cura, cadê? Marina queria dizer que adorava ela. E Manoel adorava que ela adorasse qualquer coisa, só pelo simples fato de que ela sorria quando saía sem se importar com o às vezes incomum silêncio entre eles. Marina queria poder esquecer todos os castelos que construíra para se esconder nos últimos dias. Meses de trabalho em vão, ela se despedia das tentativas de se maltratar pelas noites inundadas em pranto, de rosto iluminado de cansaço e dor.

E Manoel, num misto de riso e dor, não a mesma dor de Marina, mas uma dor de vazio desconhecido, tinha a certeza de que aquela felicidade era uma coisa mais do que antes experimentada pelo simples fato de nunca ter se pensado de pé tão cedo, ainda com um mesmo pensamento a lhe ocorrer. Não era uma bobagem de vidas deixadas para trás, em ruas que nunca percorreu, mas daquelas que sabia que não precisaria apontar os postes de luz mais bonitos, a luz que ele tinha para enxergar adiante estava ao lado. Uma vez, então, em sua vida feliz, ele viu que feliz estava aqui, sem saber por onde começar a se desfazer do que já tinha como seu eu.

Marina não sabe como começar. Não fazia mais sentido não dizer. E algumas coisas que vê e sente e vive, ela no seu viver contido de menina, não quer se calar. E grita, grita a plenos pulmões e chora e ri, não como Manoel, deitado no sofá da sala já embriagada de raios de sol, ela ri de uma felicidade já vivida, que não volta mais, da singela lembrança que preferiu guardar, dos nomes que guardou e das manhãs de chuva, diferentes dessa que começa. Parece lindo o cenário, parece tinta a óleo, parece a paisagem dos sonhos. E suas lágrimas, cansadas de serem convidadas a participar de seu desespero, mostraram que o quadro que carregava nas costas, tentando decorar os dias de hoje com o que havia ficado no passado, é feito de aquarela e se esvai.

Manoel abraça Marina, ele crê. Ela não sabe de onde vem o calor que a conforta, mas decide que não precisa mais correr. Ele adormece enfim, invadido pelas cores que ela chora. Ela sofre, mas simplesmente ri. E quer conversar com ele até amanhã de manhã, sem saber de quem é a mão que a afaga, nem que o dia para ele simplesmente acabou de apagar, pois todo o resto basta.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

você só me fez mudar, mas depois mudou de mim.

Hoje Clarice morreu. Morreu de morte matada, morte sofrida, morte abandonada. Foi a morte do amor de nunca vida, a morte do sereno escutar da palavra ávida de sentido. Clarice morreu, Alice não se culpa mais. 

Hoje foi o dia em que Alice, matou Clarice. Puxou seu pé por baixo da mesa e derrubou-a de cabeça no chão. Ela estava desacordada e não entendeu quando Alice bateu a porta atrás de si e ateou fogo na casa. Clarice sufocou com a fumaça e não conseguiu pedir socorro, rastejou por algum tempo, entre fragmentos de desdém espalhados pelo chão e por fim achou a porta, aquela que Alice fechou. 

Mas a chave Alice carregou consigo. E Clarice, sem entender o porquê, entendeu simplesmente que não seria capaz de sair. Era o fim. 

Adeus, vida, adeus. Adeus, bom dia, adeus. Adeus, promessas, palavras, perdão, palavras, pedidos, palavras, perdidas palavras. Adeus, dias, noites, dias-noites. Adeus, tempo, adeus. Adeus, boa noite, eu me despeço de todos daqui.

Adeus, mentira, adeus. Adeus, sufoco, vergonha, medo, ameaça. Adeus. Adeus. Adeus.

Meu coração bate vazio. Seu grito oco no meu peito espalha a dor que lateja o mar de veias que me irriga de falta. Estou sozinha, seu bem querer não me rege mais e, por isso, não me reconheço. 

Ontem ouvi meu nome na TV e fingi que era você a me chamar. Não era o meu nome exatamente, mas o nome diferente que escolhemos para nos chamarmos e que em qualquer contexto me lembrará você. 

Eu sinto tanto pelos dias que desperdicei acreditando que você estaria comigo para sempre. Sinto pelas noites em que senti calor e não dormi abraçada com você o tempo todo. Eu sinto tanto, meu amor. Eu sinto tudo o que eu sentia e mais o espinho frio que me atravessa quando seu sorriso me vem em áudio e cor. E enquanto você sorri eu ouço um eu te amo redondo de luar, não o seu adeus silencioso de dor. 

E de cólera não se cria adeus, se compila motivos para não enxergar o que meu mundo, você, meu vulcão, despeja cego. Eu não sabia que seus pés pesavam tanto. Eu não sabia que seu coração batia tão devagar. Eu confundi o meu mundo com o nosso, eu fiz dele um céu limpo de rajadas de vento. Eu quis um querubim para me contar a história do dia igual a esse, no caminho igual a esse, mas que hoje me leva para muito longe daquele que eu pensei fosse ser o último gosto que eu iria conhecer. 

A lua me olha queimar aqui, a maldita. E eu não sinto mais o calor me arder. 

terça-feira, 26 de julho de 2011

my knight in shining armor.

Quando eu vim para esse mundo, ganhei uma espada para lutar e um escudo para me defender. Quando eu era menino, ainda muito pequeno para entender a utilidade de coisas tão grandes, me escondia sob o escudo e fazia dele um castelo em formato de cogumelo gigante. Ali eu guardava uma vitrola antiga e umas histórias de contar que trazia mais na memória do que nas páginas que folheava sem compreender. Um dia, eu percebi que meu castelo não me protegia mais. Meus pés ficavam para o lado de fora, se queimavam com o sol do dia e se molhavam de chuva no fim da tarde. Eu era achado com facilidade por aqueles que preferia esquecer. Não conseguia mais deixar a lama do lado de fora e minha fortaleza precisou ser derrubada. Eu ainda era muito pequeno para trazer a espada em riste e descobri que a manter alinhada ao meu corpo era bastante eficaz para amedrontar alguns. Passei muito tempo parado, mais servindo de apoio do que sendo apoiado, e, por fim, percebi que precisava andar. Arrastei por muito tempo aquele peso sem saber mais uma vez qual a serventia daquilo tudo. Foi quando um dia, exausto, cheguei num beco sem saída. Embora ainda não tivesse força nem tamanho suficientes para empunhar a espada, os calos que minhas mãos já exaltavam me deram apoio para desbastar os espinhos e o caminho se abriu. Desde então, muitos vieram comigo, todos desistiram. Muitos me deram o braço e disseram, vamos, mas nunca dividiram o peso das armas comigo. Outros me viram cair e disseram, levante, mas não se dispuseram a cuidar das feridas do meu corpo. 

E eu ainda me culpo de pensar que lutar é para os fracos: os fortes seguem na sobra.

domingo, 24 de julho de 2011

they got a skin and they put me in.


Não é que eu não acredite, mas quase não sei dizer o porquê de tanta dúvida. Talvez seja o sol que não brilha mais da mesma forma, ou o cheiro da manhã que não se apresenta mais tão ocre. Li todos os livros que tinha na estante disponíveis para o amor e ainda me encontro perdido numa pilha que cresce e cresce sem tamanho para um infinito de poesia e dor que me sufoca. É um medo de não conseguir decifrar tudo o que se esconde entre as palavras o que me devora. Eu não tinha mais idade para fugir de mim mesmo quando percebi que o outro era eu em encontro ao navegar da vida. Se hoje eu não sei o que sou, não foi por mim, mas por aquilo que deixei de ser há muito tempo, já lá atrás dos tempos idos que não se foram completamente, mas que, sim, persistem e insistem em me esconder do que realmente desejo. E se não fui o que efetivamente desejei, não foi por mim, mas por aqueles a quem jurei devoção eterna. Enquanto esses se jogavam na vida que eu propiciei, eu, em mim há tanto perdido, me esquivei de minha real devoção e me escondi entre o pó e a fadiga de ser um quase nada de mim que se jogou às trevas da solidão. Tanto tempo longe desse eu, que hoje, ao me enfrentar sofro um distúrbio resultado de um conflito com o sempre e com o agora, enquanto o agora já há muito deixou de ser o sempre. Desse estado quase inerte eu me jogo ao meu tudo que se revolta como um vulcão de inimizade com o meu mais profundo conflito, uma jornada de terríveis percursos àquele que eu não reconheço mais ao olhar no espelho do quarto. Sou eu, eu penso, sou eu que me encontro ali, mas que rosto é aquele que eu não sei de quem é? De quem é a vida que aquele rosto transparece, e de quem são as rugas que eu estampo no reflexo longínquo que não entendo como meu? Se eu não sou o que vejo, o que serei então um dia quando eu puder me ver inteiro no espelho da manhã que não sinto mais amarga? Seria um vestígio do ontem e o prenúncio do amanhã, mas sem cortar o mal que converge num até amanhã? Eu me pergunto se o que eu deveria te dar é o meu eu de antes ou esse meu eu de agora, esse que você ressuscitou. Essa beleza que te encanta, qual é?, a dos dias de ontem ou a dos que nasceram após a sua chegada? Enquanto eu não puder me corrigir do desespero de ser um suporte invisível àqueles que trouxe ao meu cuidado, eu provavelmente não serei capaz de te enxergar como um todo que me pertence, pois é difícil aceitar que alguém por fim tenha me trazido à tona desse naufrágio que me isolou durante todo o tempo que conheço de vida. É difícil ser o que já tinha me esquecido sem trair aquele que construí de mim, sem me punir por abandonar não os outros, mas talvez esse meu eu recortado de necessidades alheias e aceitar que hoje é você que me constrói os dias mais lindos que já vi. Hoje eu sou visto de dentro, por olhos crus que não me temperam com seus próprios desejos. Não é que não acredite, mas quase não sei dizer o porquê de tanta dúvida.

terça-feira, 21 de junho de 2011

é água no mar, é maré cheia ô mareia ô, mareia.

Seria apenas lembrança se a vida não tivesse mudado meu destino. Ouvi dizer que a vida valeria a pena se eu não temesse a solidão. Eu a enfrentei. Eu a derrotei, pisei nela com pegadas de gigante. Eu encontrei minha fé novamente, minha fé em dias de modesto ronronar, de festa dançante em noites de quinta-feira, a quinta ensolarada que me inspirou sonhar com você pela segunda vez. Eu sou o mundo que lhe rodeia, a nota impossível de alcançar e lhe digo que as noites não precisam ser mais tão frias, mesmo hoje no primeiro dia de nosso primeiro inverno assim. Porque os outros começaram sem que se fizessem notar. A minha satisfação em lhe abraçar novamente sob a maresia em lua minguante não tem salvação. Não tem tamanho, não tem símbolo, penar, e bola de cristal nenhuma mostraria a moléstia em clarão sem lhe trazer pavor. Eu lhe disse que a minha dúvida não era quanto ao meu pedido, eu não peço, eu mordo, me faço num pedaço de sua carne macia em meu sossego, em meu silêncio, em minhas medidas sem requinte e encharcadas de paixão. Enquanto o vento sopra para longe as suas angústias, eu acompanho surda a paisagem, inspiro cega o cheiro do mar que nos abocanha mais uma vez, nos dando tacitamente a permissão indômita para prosseguir, para finalmente aceitar que se ele não pudesse prever o que se desenrolou sob suas ondas, não nos teria trazido até aqui novamente para sua benção. Enquanto as ondas quebram no meu sonho, o seu se esvai por caminhos distantes, alheio a qualquer passo que escolhemos dar. E eu sei que é o nosso primeiro sim a um mundo inteiro de novenas, de caravelas mercantes a nos embalarem em sonos compartilhados de anseios e de conquistas de ternura e afeto. Eu não seria eu se não lhe desse meu amor como ele se apresentou a mim, eu não seria justa comigo, antes de com você, pois se a vontade de lhe ter é maior que a vontade de me achar, eu espero para me encontrar quando chegar a hora de dizer que quem sabe o passado não tenha sido uma garantia de que o hoje não seria interrompido por amores desfalecidos e inertes, isentos e incólumes, humanamente destituídos dessa luz que nos envolve sem doer. Eu não sabia que para amar era preciso ser reduzida ao meu caráter, ao ruído sincero que o coração faz quando se ajusta ao ritmo de outra pulsação. Eu não sabia que para sonhar com a verdade era preciso lidar com a vergonha de admitir que ele não me ensina nada, mas que eu me livro, isso sim, a partir dele, daquilo que um dia preferi desconhecer.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

pela frente, pelo verso: vamos comê-lo cru.

E se resvalo meus seios em sua pele é você quem pede: me condenam por sentir na carne o que minha alma já traz em desalinho. E se sua voz me guia por quase cantos, quase pontos, quase notas, eu encontro a melodia do teu corpo em compasso com o meu, uma velha mania que eu adquiri com o tempo, tentar entender o que o seu peso me diz, o seu ar expirado, o pulso que me derrama restos dos estilhaços de prazer. E escorrego os dedos no meio fundo de suas costas, dos quadris aos ombros, e os abro para não perder nenhum centímetro do seu deleite. Sinto que meu sangue vai jorrar pelos poros, desidrato, arfo, e o peito fechado não me deixa respirar em paz. Me falta ar. Te devoro em mil palavras, em mil perguntas, em novecentas mil respostas que seu corpo me dá. Seu perfume me contamina, um visco doce que gruda minha pele na sua, um sem número de vezes eu e você, eu e você, e você se torna eu mesma. E como seu prazer que é meu, como seu olhar que é em mim, como sua boca em carícias, seu ventre esmago entre minhas mãos espalmadas. Te invado, uma brisa de ternura não me deixa esquecer quem é você, mas logo me lembro que agora por fim lhe reconheço, e só assim foi possível entender o que o amor me impedia. Não o meu. O meu eu desvendei em uma noite, em outras horas, sem locais, sem pátria, sem minúcias, sem referências. O meu eu entendi com o seu calor no meu ombro, meu hálito em seu pescoço e disse que seria assim o meu rito de luxúria, pois só com você a mesa é pequena demais, o começo é desespero em cores, o passo dado é uma porta aberta, a mão que afaga também me alenta e eu, sou eu somente, enquanto você dorme embaixo d'água. 

sexta-feira, 10 de junho de 2011

você tem sede de que?

Manoel acorda com um beijo de Maria e desperta com um longe sussurrar no pé do ouvido: se despeça. Ele vive sem esperar um dia que se ponha em luminosidade diversa. Ele se esquiva das adversidades do dia que se apresenta, Olá. Ele se expõe às exigências da manhã que lhe exige posturas finitas, amarradas por lenços de papel. Se rasga. Manoel segue e chega afinal ao restaurante que o alimenta todos os dias. Sem suspirar ele cede aos pedidos impacientes de quem tem fome e pensa que talvez os clientes não tenham tanta fome de comer. Ele escreve o que lhe ditam, toma nota dos anseios alheios e se esquiva novamente. Manoel não acredita no amor, ele prefere os vinhos. Os vinhos não se lamentam quando se acabam as garrafas ou quando as rolhas se quebram, isso fazem as pessoas, mesquinhas, humanas, ralé. Não se queixam de serem esquecidos nas adegas,  se mais profundo o sono, maior a expectativa para serem degustados, mais importante o dia de serem desfrutados, eles não tem pressa de se tornarem conhecidos. Não desejam durar para sempre; são o tempo da garrafa, 6 taças elegantes que giram e giram e giram entre os dedos daquele que em seguida lhe afundará o nariz para tentar decifrar sua essência. Que pretensão, eles diriam, malditas pessoas, humanas, mesquinhas, fúteis, ralé. Manoel não acredita na solidão, ele ainda prefere os vinhos. E sempre se serve do último gole das taças recolhidas das mesas no final da noite. Manchadas de batom, de lágrimas, de molho de macarrão. São apenas taças, ele pensa, o vinho é que carrega a verdade de cada um deles. Ele não era capaz de dizer o que traz a saliva que se mistura ao último gole, mas sabia que se ontem sonhou com uma casa de madeira escura, hoje era dia de se molhar de tristeza por um coração que já morreu.

Ao roterista.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

não sei de nada e não sou de ninguém.

Me empresta seu isqueiro? é frase feita de dias de frio próximo a bancas de jornal por aqui no Rio de Janeiro. Ao parar por ali para a pausa diária, a reflexão vespertina, o break entre um pepino e outro para resolver e sempre ela estará lá, a mão estendida a pedir fogo. Se eu soubesse que seria assim, eu não teria nem emprestado a primeira vez. Um círculo vicioso, um mão em mão que se propaga, quase um sabonete de quartel. E eu hoje pensei que várias vezes eu chego em casa, e entre um cigarro e outro, tentando segurar mais coisas do que posso, carrego o isqueiro na boca. Caralho!, o mesmo isqueiro imundo que passa entre os dedos de várias pessoas sedentas pela chama, a minha chama. Cansei de emprestar meu isqueiro, não me pede mais, por favor? Eu empresto hoje aqui e deixo de acender meu cigarro lá. O meu cigarro não o seu ou de um cara desconhecido na rua. Meu fogo, minha chama, meu calor, o que não se dá assim em qualquer esquina ou banca de jornal. Compre o seu meu senhor, direi da próxima vez, ou Aqui do lado vende, compra o bic jumbo que dura mais. Cansei de dividir meu fogo. Daqui a pouco a coisa se estende de um jeito que logo estarão me pedido um trago do meu próprio cigarro. 

sexta-feira, 3 de junho de 2011

arrasa o meu projeto de vida.

Obrigado pela vista. Acordar assim todos os dias seria como nunca despertar, viver um sonho azul de céu com algodão, água quente e vinho branco no almoço. Eu não queria saber de ontem, amanhã eu nunca vi, mas hoje, o dia era seu, uma rosa vermelha no ombro esquerdo, breves tolices de se contar. Quase não me lembro de ter te dado bom dia, acho que não dormi, sem dúvida ainda não abri os olhos. O inferno é aqui e o paraíso que encontro em seu sorriso é maior do que os vícios da rotina. Ninguém me contou o que seria possível de dizer se outros dias não se mostrassem assim. É que eu esqueci como era abrir os olhos e ter com quem dividir a vida. Não seria tormento prosseguir na natureza que me devolvia essa rotina, eu quase não era capaz de dizer quem ou quando, mas definitivamente o porquê de ser assim; o que eu nunca fui capaz de dizer, as delícias que são as graças de deus, esse mesmo deus que me traiu e me devolveu a falácia. Esse mesmo deus que se envolveu em nosso consolo, um ponto de luz sem destino, uma derrota sem caratér de batalha. Quando sem saber eu fui adiante, olhei a rosa, olhei o encanto da mania de ser muito mais próxima de mim, eu constatei que eu estava em cima do muro e observava a condição, a minha, de um ângulo muito mais favorável. Não, eu não decidi para qual lado descer, eu subi e firmei os dois pés no trecho esguio de tijolos e segui. Eu percebi que o meu destino era estar acima de qualquer suspeita de negligência, eu, vertiginosamente me esquivei da sua beleza e mergulhei no acordo de fé, fé de que tudo seria melhor se eu não soubesse de onde tudo isso vem. Quase não consigo mais dizer o que é meu e o que eu apreendi: apreender, não aprender, demanda observar, caminhar ali, de onde estava, e observar o quão longe eu ainda poderia ir sem deixar meu corpo ir ao chão. A solidão é vã, você me disse. Eu concordei com você e assinei: é vaga, é mera hipocrisia dessa família que chamamos nós. Uma desculpa para nos encontrarmos e sorrirmos. Já tenho certeza de que acordei: eu posso ver o fim da trilha e você, sem sombra de dúvidas, não me espera lá. Você se foi, como um dia que começou ao meio dia e terminou duas horas depois. Um sopro de felicidade que abriu meus olhos para o nada que me rodeava. Um tanto de magia e desespero, sim, mas quanto mais a gente deseja, menos a gente quer. A insatisfação e o prazer são inimigos mortais - uma singela diferença: enquanto eu prossigo, você se destitiu de todas as suas vontades, satisfaz sua malícia em me enganar. A quase vida que eu tive enquanto você navegou por aqui não me perfuma mais. E eu, ainda que tente me esquecer, penso na rosa vermelha e em como ela não me parecia clichê. 

terça-feira, 31 de maio de 2011

e o inverno no leblon é quase glacial.

Faz sol no Rio de Janeiro. Era você nos meus dias novamente. O seu chamado silencioso que me afagava os cabelos pela manhã. Eu não sabia o quanto você havia crescido desde então. Eu era uma vida depois das lágrimas roladas, uma peça de xadrez não trazida de volta ao jogo. Uma vez sem dias de ternura, nem um resquício de cólera, nem um tremor nas mãos. E quando senti a vontade em brasa quente me cantando os olhos eu entendi que era hora de seguir adiante. Um conto comum para crianças inocentes. Seria talvez quase morta, quase viva, sustentaria até sua voz sucumbir em alerta, uma rotina sem desprezo àqueles que te rodeiam. Santo de casa não faz milagres, eu me impus acreditar. Sucumbi ao mormaço das pessoas misturado ao do dia, era pura vida sem liláses a enfeitar. Quando me perdi em tuas fadigas da vida, me adverti, eu sozinha na coragem, de que essa não era a violência que havia escolhido para mim. Eu sei quando seu nome me vem sem querer; me pergunto qual a razão para tanto amor. Sem censuras ao meu desvario, me conforto do saber que não é para sempre o sufoco de me procurar em outros males para tentar crer que meu maior tesouro foi desenterrado de meu próprio baú pessoal. Encontrei junto a você dias que preferi esquecer, para que não pudesse respirá-los cheios do pó da solidão. Eu quis crer que cada dia seria um recomeço, sem que a força que renascia em mim se esvaísse em torpor e medo. Era um barco à deriva, na Baía de Guanabara. Mas hoje faz sol no Rio de Janeiro.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

sei.

Eu tinha fome, mas não sabia o que esperar. Gostaria de engolir o mundo como forma de acalmar meu coração. Talvez assim ele se satisfizesse do algo que eu não podia compreender e me trouxesse alguma paz. Eu não sabia que você podia me dizer tantas coisas em tão poucos gestos, mas foi assim. E quando chegou a hora, o dia já quase havia se acabado, num tanto de motivos que eu preferia esquecer. 

Não foi em vão que eu te trouxe aqui. Não foi em vão que eu sorri sem te pedir um dia a mais para me perder no teu colo, chorar e dormir, um quase desespero, um grito abafado no peito, uma virgula que muda o rumo do distúrbio que me provoca e me dá motivos para fugir.

Me deu um alívio pensar que não haveria sequência nos costumes que dividimos. Em tese, não houve qualquer divisão de bens, ou de emoções, mas eu vivi, eu vivi com você cada segundo que eu escolhi. E sem porquê eu me vi num mar de pensamentos retrógrados, um quase ser o que eu já não entendia mais, e me entendi à parte. E a parte de um todo dividido em quase metades. Uma parte sem todo, um pedaço de nada, sem saber-me tudo, eu vivi, naquilo que você chamou dia, eu inventei minha vida. Passei um mês sem o teu sorriso e quando me pertenço ao enfim, você já se foi para o jamais.

Tudo que eu não quis, mas já seria, eu sabia e me despi de todo o meu orgulho para que pudesse celebrar minha vida renascer. Quando eu já não pensava que o clichê pudesse ser atual, quando eu quis não me conter e destruí o meu amor sublime, eu deixei de lado o meu melhor para ser o seu, mesmo sabendo que a frase que você precisava era apenas de alento.

Eu vi quando você se foi, ainda lá, ainda em vertigem, ainda em compasso com o meu choro, o meu desespero de saber que só por hoje eu não seria capaz de conter os rasgos no meu peito. Meu peito que ressonava o grito contido, o medo corrente, um espelho que te refletia. Sem moldura para te formatar. Eu via você em mim, um reflexo perfeito do meu ser, a reprodução exata do que eu pulsava, e cada vez mais distante você ia.

Sem saber como continuar eu absorvo meus soluços, exalo um beijo quente que te guardei, prefiro não jurar mais amor, porque não sei até onde eu posso te segurar. Não sei mais onde cabem minhas mãos, não consigo mais ver se um dia serei capaz de me conter diante da sua aflição.

Eu sei que a voz que me cala é muito mais densa que a voz que me mareia os olhos, então fico. Não há Deus que me motive a ser diferente do que sou agora, nesse hoje que já se despede. Finjo que não há nada mais a dizer e sorrio, levanto seu rosto, beijo seu queixo, num gesto quase fraternal e me despeço. Não sei ouvir adeus.

Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.

terça-feira, 24 de maio de 2011

oh boy we still have one last dance to dance.

Um soco me doeria menos. Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio, que a morte de tudo em que acredito não me tape os ouvidos e a boca, porque metade de mim é o que eu grito mas a outra metade é silêncio, foi a primeira impressão do dia. O dia que eu preferia que acabasse ontem de manhã, quando eu ainda não sabia que você viria. 

Não tenho casa mais. Calcei meu sapato preferido, vesti o maior número de peças que meu corpo podia carregar ao mesmo tempo sem desfalecer, uma maçã que me esperava há semanas e um copo d'água antes de sair. E fui.

À noite deitei na calçada mais limpa que encontrei. Tinha vergonha de me escolher assim, não me encontrei onde quis me perder, não soube dizer para onde ia, porque absolutamente não sabia qual o caminho a ser seguido. Ainda que tudo me levasse a estar só, eu não podia dizer exatamente o quanto eu me sentia feliz com a solidão. 

Ela me aqueceu à noite, me deu conforto, me fez menos imunda do que eu me imaginava. Me fez ser eu novamente, uma nota perdida no fundo da bolsa que a gente encontra amarrotada quando precisa pegar um ônibus para casa. A casa que eu não tinha mais. A casa que eu cuidei como se fosse minha, mas era de vocês. A casa que me acolheu quando eu estava perdida. E hoje, eu me perco porque quero, porque preciso me encontrar de novo, como se eu não fosse desse mundo, meu deus do céu, o que eu faço para entender o que se passa aqui e tanto ao meu redor?

Se fosse só achar uma resposta, tudo pareceria quase ideal, por mais que eu pudesse desviar minha atenção dos dias nublados, a vida continuaria a chover, ainda que eu soubesse o porque, não haveria o que será, ou que serei. Não há jeito de dizer o que eu poderia evitar se não escolhesse por mim. Eu não escolho, eu me disponho a ressurgir do nada, como sempre foi. 

E ainda que eu teime ou que eu fuja do meu todo, uma parte sempre permanece, mesmo que os pedaços com o tempo se descolem andarilhos pelo mundo, deixo meus dias vividos no passado e penso que o futuro é um passo adiante. 

Já me acostumei a essa rotina. Eu durmo aqui hoje, encosto minha cabeça no seu peito e me pergunto se amanhã a calçada estará menos fria.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

há sempre um lado que pesa e um outro lado que flutua.

Me sinto como se estivesse recomeçando. Quase um deja vú. O que leva a crer que dessa vez é diferente é porque simplesmente não é, mas por si só uma repetição aprimorada dos caminhos já percorridos antes. O que seria desse amor se não fosse essa viagem comum em épocas diferentes? O que seria desse porém se não nos desse a certeza de que se trata de um momento perfeito em sua imperfeição, imaturo e imprevisível em sua constância e vazio e pleno e repleto de aventuras que se dividem à distância. Não, eu não pretendo me lembrar de você como um sonho interrompido, um brilho de farol que oscila entre um sim e um não. Eu não sou assim, eu não me encontro no desencontro do acaso e simplesmente esqueço o que ele trouxe para mim. Eu sou o encontro do seu eu perdido na estrada terrena, aquele dia que se iluminou com um sorriso de esguelha e que você preferiu congelar no tempo e arquivou no fundo do baú na casa do seu pai, aquele que você visita uma vez por ano para dar feliz Natal. As verdades que eu prefiro guardar para mim, as que você já ouviu durante o sono, essas eu ornamento com os meus enfeites, os que eu venho comprando há meses para a casa que eu planejava só. Enquanto tudo se passa aqui dentro, eu vejo você, do lado de fora do mundo que escolheu, semeando flores em jardins inférteis, buscando um perfume que você já sabe onde encontrar. Não, eu não me proponho a te dar o mundo, estamos nele, você me pede pra te deixar aí, estando assim, querendo estar onde eu estou, e eu te digo que quero que você seja esse lugar.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

capítulo 2 - item IV

    Revejo-a
em pensamentos,
saindo
do banho
e largando
a toalha.
    Seu corpo,
desejo
e desejo
não desejar.

    O tempo
segue 
imutável.

    Luto
para que ela
me queira
ou me deixe 
ficar.




O Natimorto, Lourenço Mutarelli.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

nobody wants you when you are down and out.

Por aqui é assim que a tristeza vem. Enquanto eu brincava de ser deus, enquanto eu dizia para os outros que ser eu me bastava. Nem eu fazia idéia de quantas vidas seriam necessárias para eu reaver tudo que havia renunciado desde o súbito momento em que resolvi decidir pelo que acreditava mais justo e honesto, ainda que por isso fosse necessário amargurar a dúvida o resto de meus dias. Por aqui é assim que me resguardo, que me afasto do olhar julgador dos outros. E cada vez mais me dou conta do quão amarga minha vida se tornou a partir do dia em que escolhi simplesmente não me importar com a opinião daqueles que me cercam, apenas porque acredito que ninguém é capaz nem tampouco digno de merecer esse posto, nem exercer essa função. Acredito que nem eu tenha o direito nem a capacidade de dizer o que é certo ou o que é errado, pois um passo só movimenta um corpo quando guiado a uma determinada direção: quantas vezes me vi repetindo meus passos por acreditar que me levariam adiante porque de outra vez o fizeram, e acabei me perdendo no caminho? É nesse mar de olhares perdidos na multidão que se encontram o meu e o seu, vagando indolentes e inertes, recaindo sobre os outros e nos julgando enquanto nos incomodamos silenciosamente com o peso da observância alheia, não pelas opiniões em si, porque estas - por mim posso falar - nada influenciam, mas pela invasão certeira quando estão em pauta nossas escolhas, nossos gostos, aqueles sobre os quais somos capazes de falar por horas a fio, sem a corrupção da crítica. Não estamos mais em cárcere aguardando na madrugada, no chão de pedra da cela fria uma mão milagrosa abrir o portão que nos cerca, e hoje acredito que nunca estivemos. As barras das grades eram afastadas o suficiente para que passássemos o corpo inteiro, baixas o suficiente para que pulássemos sem riscos; o que nos intimidava em absoluto eram os olhares dos que nos assistiam de fora: a prisão estava mesmo dentro de nós e nos impedia de perceber que tudo não se passava de um medo virtualmente imposto, sem manifestação oficial nem documental. E é essa discussão recorrente sobre o peso do olhar dos espectadores - e não das personagens - das nossas histórias que encerro aqui.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

come back to me and swim the seas of my deep dark hair .

No meio do salão. Gira. A fumaça densa de charuto acaricia o coque mal amarrado no alto da cabeça, alguns cachos derretendo até o meio das costas, vestido preto, a renda oscula a curva do joelho. Gira o pé em ponta por conta do salto grosso do sapato boneca como para se acomodar ao encaixe firme da mão dele na curva de suas ancas, cego, tateando a aflição de seu desejo.

Gira. Ele a puxa contra si, seu peito resvala no tecido delicado que a cobre. Úmido e quente. Ela está alguns centímetros mais alta do que ele, por conta do mesmo salto grosso do mesmo sapato boneca, o que, por enquanto, pouco se pode notar em razão da segura distância entre os corpos que se atraem e se repelem simultaneamente.

Ele a vê de perto o suficiente para notar gotas de suor se formarem nas conchas inferiores de seus olhos derretendo a maquiagem já não mais tão impecável quanto ela ainda se imaginava delineada. Afastados, a mão direita dele guia o embalo do quadris e a pressão das pontas dos dedos na cintura estabelece uma intimidade invisível aos olhos da platéia. 

Gira, gira, gira, vai. Volta. Mais perto dessa vez. Ela sente o hálito dele com precisão. Um sopro de malícia, inaudível no meio das vozes sussurradas, ainda a mais atenta vigília seria incapaz de percebê-lo. E as pontas dos dedos das mãos fazem o seu trabalho. Gira. Direita. Volta.

Lúdico, lúcido, mágico, magnífico.

Agora vejo. Ela está pelo menos cinco centímetros mais alta do que ele e foi essa diferença que permitiu a acomodação das silhuetas, imaculadas. O braço direito dela e o esquerdo dele perderam a serventia e se soltaram à lateral. Perderam a utilidade também a platéia, a música, fim, os corpos se compreendem, as almas dançam.



domingo, 10 de abril de 2011

a cabra. {o surto}

Pensar em você tão próximo e tão distante sem encontrar solução para esse desespero e para a solidão... Mas não é só me sentir sozinho, é sentir sua ausência nas hipóteses que simulo ciente da sua cumplicidade. Muitas vezes me assusto só de sonhar e, sobretudo, me distraio se me percebo sob as sombras da possibilidade de desconhecer o que o acaso separou para os nossos dias seguintes. Sei que dificilmente seria capaz de supor o sucesso sem considerar os destroços.  Mas assim, nada sóbrio de desejo, gozo com seu balanço e ascendo. Sinto saudades dos seus seios que se pronunciam em sensualidade insensata como pouso para meu sexo. Em uso da minha face cética busco fazer cessar a certeza da intensidade, sintoma de um misto de sofreguidão e mistério sacro, e, cínico, visto meu semblante de superioridade. E na imensidão do deserto da minha essência, me vejo manso e solícito, e não me canso, mas apenas resisto e insisto, pois sei que o resultado será um samba sensacional, em compasso com os sinos da missa de casamento. Um sacrifício para a minha versão antes vazia, uma cena dissonante à minha inconstância selvagem, mas que desde hoje será somente festa. Por mais que te pareça satisfação mesquinha posta em questão pela minha destreza indescente e, diga-se de passagem, usual, desça de seu pedestal e faça cessar minha histeria, mesmo que em resposta tácita. É o ápice Suzana.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

a cabra.

Ele se incomodava com a masculinidade dela. Com essa facilidade com que lidava com as relações, principalmente as que estavam muito além do amor rígido e simétrico em que 1 e 1 são apenas e infelizes 2. Não, ela se movia pelo agora, o instante inequívoco e irrevogável que a maioria prefere rejeitar. Ela é o hoje, o 1, o 2, o 3, até o 60, e, retornando ao primeiro segundo, já era outra pronta para se renovar de outros em busca de si. E, renovada, era capaz de ser mais do que ele jamais poderia suspeitar ou compreender: ele, atado de costas para a luz, não era capaz de ser, mas, tão somente, de se alimentar dos restos que podia alcançar.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

a barca. {a cena}

Sentia falta daquele cheiro de flor de laranjeira. Ele saía do banho e não se enxugava por completo, tinha a mania de sair pela casa com o corpo ainda úmido, de cuecas e um cigarro em punho. E passava de um lado para outro como se procurasse algo que ainda desconhecia. E de repente sentava a seus pés aninhando a cabeça entre seus joelhos a ronronar, enfiando o nariz em suas coxas, suplicando em silêncio que lhe coroasse de afagos. Era ríspida e se fingia indolente, negando-lhe de início as carícias, até que por fim ele se expusesse e com palavras ainda que resguardadas por duplos sentidos mostrasse sua demanda obscena pelos dedos dela em seu couro cabeludo.

Deitada no sofá ela se fingia distraída com qualquer coisa na televisão, mas o havia acompanhado desde que saíra do banheiro com a toalha pendurada no ombro direito tirando o excesso de água dos cabelos com a palma da mão, e o perfume invadira imune em aquiescência todas as células de seu corpo, para nunca mais deixá-las. E era luminosa aquela flor de laranjeira, que se transformava em minúsculas partículas estelares que cintilavam ao seu redor. Ela acompanhou-o em seu gingado pseudo absorto, passando em sua frente uma, duas, três vezes, esperando o instante em que ele (tão fingidamente quanto ela) a notaria.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

a barca. {a dança}

Já passava das 2h da manhã, quando se falaram pela primeira vez. Ela disse que tinha vontade de café e ele pediu que em troca lesse para ele. Levantou-se com as pernas moles do prazer recente, as longas pernas que ela tanto admirava. Ela permaneceu imóvel, quase intacta no chão da sala e acompanhou se corpo esguio se dirigir curvado até a porta da cozinha. Ele sentiu o calor do seu olhar percorrer-lhe a nuca, virou por um segundo e sorriu para ela. Nu e indefeso, ele não tinha mais medo.

Escolheu as canecas, encheu a chaleira e pôs a água para ferver. Acendeu um cigarro, provavelmente a única coisa que não lhes faltaria nos próximos dias.

Ela se pôs de pé, as pernas rijas do prazer recente, e finalmente percorreu os móveis e paredes daquela que seria a sua morada nos próximos dias. Em frente à estante, acariciou serena as lombadas dos livros e escolheu seu discurso.

Por ti junto aos jardins recém-enflorados me doem os perfumes de primavera.
Esqueci teu rosto, não recordo de tuas mãos, de como beijavam teus lábios?

A casa era invadida pelo cheiro selvagem do café. Descia as escadas, vazava pelas janelas, inundando toda a vizinhança de virilidade e de luz da manhã, ainda que o céu continuasse a ser um manto negro. Entregou-lhe a caneca vermelha, ficou com a outra sem desenhos especiais e ela se pôs de pé no sofá e prosseguiu.

Por ti amo as brancas estátuas adormecidas nos parques, as brancas estátuas que não têm voz nem olhar.
Esqueci tua voz, tua voz alegre, esqueci de teus olhos.
Como uma flor a seu perfume, estou atado à tua lembrança imprecisa. Estou perto da dor como uma ferida, se me tocas me maltratarás irremediavelmente. 

Ele olhava para ela, a flor que dançava  suavemente no ritmo da brisa da madrugada que se estendia e dava início aos dias que não eram dias, mas um único tempo que se desdobraria em mil momentos irreconhecíveis a olho nu.

Tuas carícias me envolvem como as trepadeiras aos muros sombrios.

E nesse trecho já estava sentada no colo dele, umbigos colados, as pernas em tesoura, e afastava o cabelo para que ele pudesse beijar atrás de suas orelhas.

Esqueci teu amor e não obstante te adivinho atrás de todas as janelas.

Puxou os cabelos dela a fim de que pudesse mirar nos olhos e por fim ele disse de cor

Por ti me doem os pesados perfumes do estio: por ti volto a espreitar os signos que precipitam os desejos, as estrelas em fuga, os objetos que caem.


Suzana lê "Um amor", de Pablo Neruda

sexta-feira, 1 de abril de 2011

a barca. {a glória}

Chovia, meu deus, como chovia. Caminhava decidida, semiprotegida por um guarda chuva imenso, do qual, por 3 ou 4 vezes, pensou em se livrar, os pés inevitavelmente mergulhados nas poças, encharcada até os joelhos. Não ansiava pela chegada, mas pelo encontro em si. Não era capaz de decidir o que era dor de outras feridas e o que de fato temia sobre ele. Nada além de ser ela mesma, ou sobre ter que fingir um outro sorriso para ser acolhida perpetuamente. E chovia.

Já havia ensaiado o desejo de encontrá-la. Como se pudesse prever o que aconteceria, planejou solitário o instante em que ela apareceria do outro lado da rua. Tinha medo de sua confiança, mas estava certo de que nada poderia evitar que se entregasse. Não pensava em derrota, mas no sucesso inevitável de quando se deseja sem interferência da razão. Esperava que ela nada dissesse, que compartilhasse delitos de paixão irresignada e no fundo tinha medo do que seria dito, pois definitivamente não sabia mais como se defender do que ela lhe havia despertado com suas promessas prematuras. E chovia, meu deus, como chovia. Imóvel na esquina, preferia aguardar sob a cortina d'água a abrir o guarda chuva minúsculo que trouxera para lhe oferecer.

E aproximando-se do inevitável, ela hesitou por alguns segundos. Mudou a expressão, certamente para evitar que ele percebesse a inquietude em seu olhar, o que era muito mais importante do que acertar os cabelos ou secar o rosto úmido de suor e gotas de chuva. 

E aproximando-se do evitável, ele, ainda que desamparado, firmou a postura, acendeu um cigarro e desviou os olhos da esquina por onde ela chegaria, tentando controlar o tremor das mãos e os saltos que lhe davam o peito.

Chovia. Chegou. Unidas as mãos geladas, foi derretida a segurança preordenada. Sem palavras, nem convites disfarçados pela timidez, subiram a ladeira em silêncio, com a certeza de que nada mais faria diferença, além da chuva que serviria de motivo para que ela não se fosse ainda naquela noite.

Ela jogou fora o guarda chuva imenso e decidiu aceitar o dele.

segunda-feira, 28 de março de 2011

a barca.

Era como um sonho sem fim. Quinze dias em um, a contagem das horas não os pertencia, não havia começo nem entardecer, tudo era apenas um único momento, dividido em sequências indivisíveis, de impossível demarcação, seguindo uma falta de sentido social ditada pela vontade: sem freios, acronologica, permissiva. Um não viver do tempo e um entregar-se a ele sem resguardo, impróprio, vivia-se simplesmente, todo o necessário estava ali, um bunker, um refúgio, nada além de uma atmosfera sólida o suficiente para que se bastassem. Ler, comer, ser comido, beber, ser bebido, fumar, ver, tocar, banhar, chorar, dormir, sonhar. Fora da ordem, não nessa ordem, criada uma ordem despida de autoridade, esse sonho sem fim, um dia que não anoitece, luzes que não se apagam, simples demais, vivia-se. Enquanto o mundo acordava, brindava-se vinho tinto, ouvia-se jazz e dançava-se tango. Sem ordem definida, simultaneamente. Pablo Rodrigues, Nelson Neruda, Arnaldo Ben Jor, Jorge Antunes. Saliva, suor, mania, macia, caía, caiada. O ar era multicolorido e os ventos, ah, esses circulavam aflitos, buscando espaço entre os pensamentos que se degladiavam à procura de oxigênio, escasso alimento para a metamorfose das idéias que faziam amor sem cessar. Não era possível dizer em que se agarrava o primeiro elo da corrente que os aprisionava em si mesmos, osmótica, visceral e surpreendentemente etérea. Não havia senão, talvez, amanhã. Era-se. Amava-se.

terça-feira, 8 de março de 2011

carnaval de manhã.

Meu olhar continuou te buscando na multidão, mas esvaziar o copo me impediu de fugir. E eu queria continuar pensando em você, e que você aparecesse como se me esperasse só pra me tomar pelo braço e se embrenhar no meio do povo. Você beijando os nós dos meus dedos fundidos nos seus.

Impossível, de fato, tão bem assim. Nesses mesmos dias de hoje, em que a gente escolhe o que quer ser sem se preocupar com os olhares dos medíocres. Tudo isso seria hoje, algumas horas a mais.

A saia dessa vez deixei guardada no armário. Como seus enfeites, cujos detalhes não quero comentar, eu evito lembrar de como lhe caíam bem, e também os guardo no fundo do meu armário. Junto com a saia, que nunca mais será a mesma, tapete na sala de jantar.

E quando me tomaram a mão dessa vez, eu fechava os olhos e só via você, daqueles que não se encontra tão facilmente, não naquele verde, não daquele tom.

Não seria pouco se eu dissesse que além de tudo, não do que passou, mas do que eu sei que viria, eu sinto falta daquela sensação de saber que você desconstruiria o que eu achava que sabia sobre desejo. E muito, mas muito mais do que isso, porque isso efetivamente foi consumado. Mas, principalmente, sobre entender que ter é muito mais do que possuir.

tereza, fernanda e clarice de manhã.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

de cor.

O céu amarelou. E eu aqui na mesma posição, acompanhei o sol se despedir de mais um dia iluminado. De repente precisei de um café e levantei da vista imóvel da janela. A casa inteira estava amarela. 

Havia uma menina sentada no meio da sala de pernas cruzadas. A mãe chamava seu nome várias vezes e a mandava ir para o banho. E ela, distraída com a TV, com as bolachas e com o cadarço desamarrado do tênis. 

Na cozinha, pus a água para ferver e do vão da área de serviço eu vi o sol se pondo. Uma bola de fogo no fundo da paisagem. 

Passei a língua nos lábios e verifiquei a pele fina, ressecada e salgada. Os pés fincados na areia. Os cabelos molhados nas costas. Fechei os olhos e ouvi as ondas ao longe. Não era escuridão nas pálpebras cerradas. Era uma cortina de lava quente. 

Provei o café e o percebi fraco demais. Enchi duas xícaras e saí pensando que talvez tivesse exagerado no açúcar. Voltando para o quarto eu vi você na rede da varanda me oferecendo um cigarro. Dei um sorriso de desdém. Eu não fumo mais.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

ainda é cedo.

Não penso, não vejo, vivo e planejo fatos que não prevejo exatamente, mas que conheço efetivamente ainda que não tenha certeza de quem são as personagens a completar o cenário. Não que não veja. Na verdade, vejo vários rostos, às vezes os invento, mas nunca consegui preenche-los  todos num take só. E quando retomo a história, é para recomeçá-la desde quando a idéia se plantou em mim. Por vezes repito as cenas, mas muitas mais as excluo, aprimoro, embora nem assim consiga conhecer o final.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

sim.

Eu disse finalmente. A mim, a nós, por vós, por tanto tempo que esqueci de me lembrar da vida que passava rente ao chão batido a minha frente. Sou sua, quero sua, bebo sua,  tenho, corro, suo, choro, grito, vivo sua. Mudou o ritmo, o critério, o calor da manhã e das nossas pernas entrelaçadas pegajosas de verão. O esconderijo que criei desmoronou, e agora, eu me torturo, o quê é que a vida vez da nossa vida? Se não fosse por um dia e foi por e desde esse dia que eu me vi enlaçada na sua estrada sinuosa e me impûs limites desconexos e incoerentes para justificar a indecisão. Sim. Eu disse finalmente, como alívio e não como final. Eu disse e pensei, por que não disse antes, mas de imediato percebi que não faria sentido se não fosse agora. E se não tivesse sido assim, como estaria meu peito, senão inflado dessa ternura que me contagiou e hoje me aflige. Sim. Espero, desejo, aguardo, digiro, degluto, me lambuzo e não pretendo me esquivar.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

eu caetano. tu caetanas.

Há muita gente apagada pelo tempo nos papéis desta lembrança que tão pouco me ficou. Igrejas brancas, luas claras na varandas, jardins de sonho e cirandas. Foguetes claros no ar. Que mistério tem Clarice? Que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme no coração? Clarice era morena como as manhãs são morenas. Era pequena no jeito de não ser quase ninguém. Andou conosco caminhos de frutas e passarinhos, mas jamais quis se despir entre os meninos e os peixes. Entre os meninos e os peixes, entre os meninos e os peixes do rio. Do rio! Que mistério tem Clarice? Que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme no coração? Tinha receio do frio, medo de assombração. Um corpo que não mostrava, feito de adivinhações: os botões sempre fechados, Clarice tinha o recato de convento e procissão. Eu pergunto o mistério: que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme no coração? Soldado fez continência, o coronel reverência, o padre fez penitência - três novenas e uma trezena -, mas Clarice era a inocência: nunca mostrou-se a ninguém, fez-se modelo das lendas. Fez-se modelo das lendas, das lendas que nos contaram as avós. Que mistério tem Clarice? Que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme no coração? Tem que um dia amanhecia e Clarice assistiu minha partida. Chorando, pediu lembranças e, vendo o barco se afastar de Amaralina, desesperadamente linda, soluçando e, lentamente, e, lentamente, despiu o corpo moreno, e entre todos os presentes, até que seu amor sumisse, permaneceu no adeus, chorando e nua, para que a tivesse toda, todo o tempo que existisse. Que mistério tem Clarice? Que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme no coração?
Caetano Veloso

domingo, 2 de janeiro de 2011

da manga rosa quero gosto e o sumo.

E daí. Vou dizer coisas das quais você não irá gostar. Provavelmente porque são verdade. E se umas delas for que não te desejo mais. Então deverá ser porque não mereço seu amor. E isso não vai te doer. Não mais do que me perguntar porque ser eu mesma não bastou. Bastou, mas não foi o suficiente, o que não é igual. E o que faltou para ser. Um dia sem se mostrar traiçoeira. Sem você duvidar. Um dia acreditando, o que também não é igual. E o que seria. Enxergar. E viver, onde fica. Perdido ao longo da paisagem.