Há muita gente apagada pelo tempo nos papéis desta lembrança que tão pouco me ficou. Igrejas brancas, luas claras na varandas, jardins de sonho e cirandas. Foguetes claros no ar. Que mistério tem Clarice? Que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme no coração? Clarice era morena como as manhãs são morenas. Era pequena no jeito de não ser quase ninguém. Andou conosco caminhos de frutas e passarinhos, mas jamais quis se despir entre os meninos e os peixes. Entre os meninos e os peixes, entre os meninos e os peixes do rio. Do rio! Que mistério tem Clarice? Que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme no coração? Tinha receio do frio, medo de assombração. Um corpo que não mostrava, feito de adivinhações: os botões sempre fechados, Clarice tinha o recato de convento e procissão. Eu pergunto o mistério: que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme no coração? Soldado fez continência, o coronel reverência, o padre fez penitência - três novenas e uma trezena -, mas Clarice era a inocência: nunca mostrou-se a ninguém, fez-se modelo das lendas. Fez-se modelo das lendas, das lendas que nos contaram as avós. Que mistério tem Clarice? Que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme no coração? Tem que um dia amanhecia e Clarice assistiu minha partida. Chorando, pediu lembranças e, vendo o barco se afastar de Amaralina, desesperadamente linda, soluçando e, lentamente, e, lentamente, despiu o corpo moreno, e entre todos os presentes, até que seu amor sumisse, permaneceu no adeus, chorando e nua, para que a tivesse toda, todo o tempo que existisse. Que mistério tem Clarice? Que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme no coração?
Caetano Veloso
2 comentários:
clarice é q tá certa. a gte perde por se mostra demais.
ok, o pessimista.
escaldado, eu diria. ;)
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