sexta-feira, 12 de outubro de 2012

de dia lágrimas à noite amantes.

Moro no décimo quinto andar de um prédio de fundos numa rua embolada de outros tão altos quanto o meu. Cercado de muita gente e seus diversos e ilimitados sons, eu vivo só, nesse apartamento justo demais para duas pessoas. No caso, somos eu e meu piano que habitamos há alguns meses esses 45m². No inicio, eu me incomodava com tanta gente falando, brigando e se amando o dia inteiro; o movimento não pára nunca, é um entra e sai constante de pessoas de todas as idades e personalidades, é difícil um período de completo silêncio durante mais de uma hora. Ainda sinto falta daquele som que acontece quando nada soa ao redor; nessas horas eu consigo parar de pensar em tudo, a única coisa que me vem é que estou vivo, e regulo meu estado de espírito de acordo com a velocidade que meu coração bate, vezes mais rápido, vezes mais devagar, outras parece quase não bater. Algumas vezes, não muitas, isso acontece, entre quatro e cinco da manhã, o que me força invariavelmente a deitar com o céu claro. Isso me obrigou a instalar um blackout na janela e a usar meus tampões de ouvido para dormir, o que não é nada confortável, mas consegue diminuir os ruídos em meus sonhos. No meio da tarde, acordo e vou ler o jornal já defasado enquanto tomo café. Todos os dias eu penso, vou acordar cedo, amanhã eu quero tomar café, comer um sanduíche, estou necessitado de sanduíches, estou com desejo. Acabo sempre dormindo muito tarde e não consigo acordar; quando desperto, meu apetite já se foi, ou acaba indo embora com o cheiro de comida que se mistura pelo ar, já que é a hora regular do almoço. É no final do dia que vou sentar ao piano para agora, eu, contribuir para o caos sonoro. Em regra, toco por umas três horas sem parar, o que acredito ser bastante justo, visto que é o único momento do dia em que faço barulho. Há alguns dias, trabalhando numa peça um bocado intensa, meu punho direito reclamou e fui obrigado a parar um pouco antes. Preocupado e incomodado, fui até a janela fumar um cigarro. Era o sexto dia de chuva consecutivo, depois de quase um mês sem uma gota d'água cair do céu. Buzinas, sirenes, vozes, telefones, relógios. Apesar de estar nos fundos, estou de frente para os prédios da rua atrás da minha. Entre eles restam apenas três casas, e só uma delas serve de moradia, visto que uma virou igreja evangélica e a outra um centro de terapias holísticas. Eu vivia me perguntando como o pessoal conseguia se concentrar com a cantoria da casa vizinha, até que mês passado se mudou para o apartamento ao lado do meu uma família evangélica, com a qual inclusive já cruzei na porta da igreja, e então passei a ter minha vida embalada pelas músicas que se repetem ao longo de todo o dia, até que eles saiam para o culto. Depois de duas semanas, eu já tinha me acostumado e até estranhava o dia quando não havia ninguém em casa. Bem em frente à minha, quase todas as janelas estavam acesas; lustres, abajures e telas de TV davam ao prédio uma aparência de árvore de natal, com pisca-piscas coloridos e sincronizados, e me trouxe por alguns segundos o cheiro das rabanadas da minha avó. Exatamente na mesma altura que eu, havia acesa uma lâmpada azul, que servia de adereço para o topo da árvore de natal, bem no meio, no último andar. Era uma varanda enorme e estava escancarada apesar da chuva, provavelmente em razão do calor que fazia em contrapartida. As cortinas estavam completamente abertas e as portas de vidro me davam visão total do cômodo que devia ter o mesmo tamanho do meu apartamento. Estava completamente vazio quase: havia uma cama no canto direito, um armário na esquerda, e na parede oposta à varanda um imenso espelho. Nunca consegui entender de onde ela veio, só sei que de repente surgiu no meio do quarto já em movimento e era linda. Estava vestindo uma combinação de várias roupas, meias, um collant, uma calça por cima, algo em torno dos tornozelos, e os pés descalços. Os cabelos escuros estavam amarrados no alto da cabeça numa espécie de coque que deixava escapar alguns fios na nuca e na frente do rosto. Os braços se moviam suavemente em contraste com os passos firmes e os ângulos obtusos que faziam as pernas. A mesma coreografia foi repetida cinco vezes, quando ela finalmente, exausta, parou. Alguns segundos depois, a porta se abriu e sua mãe lhe chamou com o olhar. Já era hora do jantar provavelmente e ela precisava ir. A luz se apagou, mas eu ainda fiquei ali por uma meia hora. No dia seguinte, acordei aflito, de um sonho do qual não conseguia me lembrar, mas com a pele ainda vibrando de tão real. Demorei alguns minutos para conseguir me mover, me levantei e fui fazer o café. Ainda chovia lá fora, mas menos do que no dia anterior; não ouvia nenhum som de rádio, a vizinha devia ter ido ao mercado ou algo assim. Fui até a porta pegar o jornal, mas não havia nada lá, o porteiro provavelmente esqueceu ou deixou no apartamento errado. O piano ainda estava aberto, me sentei na banqueta e olhei para a janela. Do outro lado, tudo estava fechado, agora vejo que não são cortinas, mas persianas também azuis que destoavam do dia cinza. Como um relâmpago fui atravessado por imagens de início turvas e desconexas que aos poucos foram se organizando não pelos movimentos mas pelos sons. Toquei durante cinco minutos sem parar, estava pronto o primeiro movimento. Ele se repetiu nota por nota durante uma hora, quando por fim consegui lembrar de todos os detalhes da coreografia com que sonhei, a mesma embalada na outra noite pela melodia das gotas caindo nos telhados. Meu corpo todo queimava como no sonho, um calor inexplicável, a temperatura havia caído vertiginosamente durante à noite. Sem mudar nenhuma nota, escrevi tudo para ter certeza de que estava pronto. O dia se arrastava e então me dei conta de que o sonho havia me acordado muito mais cedo do que o normal, mas a essa hora não estava com nenhum apetite. Às cinco da tarde a luz já estava mais baixa do que de costume, a chuva havia diminuído consideravelmente, mas ainda havia muitas nuvens no céu. Às seis já era noite e as luzes começaram aos poucos a serem acendidas. Então, ela chegou. A roupa úmida da garoa, os cabelos agora soltos, passavam um pouco dos ombros. Ela deixou tudo em cima da cama e saiu do meu campo de visão. Quando voltou, havia se trocado e o coque estava lá novamente, dessa vez impecável. Corri para o piano e ao primeiro movimento, comecei a tocar. Seu rosto mudou imediatamente a fisionomia, os olhos se cerraram e a boca se abriu de leve involuntariamente. Os braços ainda eram suaves, as pernas um pouco mais obtusas, o corpo ia ao chão muitas vezes e a cabeça girava e voltava ao mesmo ponto numa velocidade que meus dedos não podiam acompanhar. No meio de tudo a porta se abriu o que nos interrompeu quase simultaneamente. As mãos se moviam muito, a princípio eu não tinha entendido, mas não demorei a perceber que ela não podia ouvir, e por isso ontem se surpreendeu quando a mãe entrou no quarto. Eu tinha pensado que não havia batido na porta, mas a verdade é que de nada adiantaria. Fiquei imóvel, decepcionado. Ela nunca iria me ouvir, nunca entenderia o que estava sentindo. Ela já havia recomeçado, me ignorava completamente, os passos não faziam mais sentido para mim, embora continuassem embalados por uma misteriosa batida que a guiava sem deslizes. Eu olhava para ela completamente perdido e tentava encontrar uma forma de ela me escutar. Foi num rompante que me sentei novamente ao piano e a segui. Quanto mais ela girava, mais alto eu tocava, numa tentativa desesperada de que de alguma forma ela me ouvisse. Aos poucos, não só eu, mas tudo ao redor se deixou invadir pela música, eu sentia todo meu corpo vibrar, depois o piano e o chão. Os quadros caíram das paredes, o vaso caiu da mesa de canto, os lustres tilintavam. O prédio inteiro tremia, e de repente, quando cheguei ao fim, fez-se silêncio total, a não ser pela chuva que havia voltado à toda, virei para o lado e a vi de pé na sacada, olhando na minha direção. Só não sabia se era tempestade ou lágrima o que molhava o seu rosto.

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